O Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) de Caxias do Sul autuou o Hotel Pieta, em Garibaldi, com 15 infrações que teriam sido cometidas pelo estabelecimento no período em que a mulher de 74 anos morou no local. Conhecida na cidade como Luíza, era dada como desaparecida pela família desde 1979 e foi encontrada no dia 31 de janeiro, após denúncia anônima de maus-tratos e situação análoga à escravidão. Ela estava morando num espaço no térreo do estabelecimento.
Entre as irregularidades apontadas estão deixar de pagar o 13º salário, essência de trabalho análogo à escravidão, não ter pago rescisão trabalhista, não ter pago FGTS, não ter pago a multa de 40% da rescisão, deixar de conceder férias, deixar de submeter o trabalhador a exames periódicos, condição sanitária irregular, refeitório irregular, alojamento irregular, não anotar Carteira de Trabalho e pagar salário mínimo inferior ao vigente.
O advogado que representa o hotel, Flavio Green Koff, afirmou que até a tarde desta segunda-feira (13) a documentação do MTE, que é enviada pelos Correios, não havia sido recebida. Conforme o Ministério, após o recebimento dos documentos, o hotel tem até 10 dias para apresentar a defesa sobre os itens apontados. Depois de analisada a defesa, é calculada e aplicada a multa com base nas irregulares que o MTE entender cabíveis.
As duas vidas de Luíza
No fim do dia, o gado se reunia para dormir perto da casa onde morava um casal e nove filhos, no interior de Encruzilhada do Sul, cidade do Vale do Rio Pardo. Ao mesmo tempo, em silêncio, as crianças se escondiam para preparar o susto. Assim que os animais deitavam, um pneu rolava entre eles e gargalhadas infantis podiam ser ouvidas campo a fora. Crescida em família de poucos recursos, a idosa encontrada em Garibaldi não deixava a timidez impedir que participasse das brincadeiras "arteiras" dos irmãos. A pedido da família para contar a história dela, as identidades serão preservadas e ela será chamada de Luíza, como era conhecida na Serra. Os relatos da vida em família são de uma irmã e de uma sobrinha, já que Luíza ainda não fala com a imprensa.
Desde os primeiros anos de vida, a família notava a facilidade que a então menina da década de 1950 tinha para aprender. Assim como os oito irmãos, não chegou a ir para a escola e aprendeu a leitura, escrita e matemática básica com o pai.
— A gente não tinha condições de ter colégio, porque na região não existia colégio naquela época, mas ela também aprendeu com o nosso pai e sempre foi bem inteligente — conta a irmã de Luíza.
No dia 15 de fevereiro, Luíza e a irmã celebraram 78 e 74 anos, respectivamente. É que elas fazem aniversário no mesmo dia com quatro anos de diferença.
A família vivia com esparsos recursos, mas o vínculo entre os irmãos foi sendo construído pelas brincadeiras – pega-pega e esconde-esconde eram as mais comuns – e pelas situações pelas quais passavam. Por morarem em uma região de campo, mais de uma vez se depararam com com cobras dentro de casa.
— Todos nós tínhamos medo, era muito comum ver cobra perto de casa e até dentro. Nós não conhecíamos nenhum tipo de animal feroz. Não tinha onça, tigre, leão, nem macaco e nem bugio. A gente conheceu esses animais na cidade. O único que aparecia lá em casa era cobra. Elas nunca conseguiram morder nenhum de nós porque a gente sempre via antes e chamava alguém pra ir lá matar — lembra a irmã.
Na fase entre infância e adolescência, assim como as irmãs, Luíza aprendeu a costurar. Foi nessa época que as meninas começaram a fazer as próprias roupas e combinavam os trajes para festas de família.
— Elas procuravam sempre ter alguma coisa em comum — afirma a sobrinha de Luíza, referindo que elas combinavam qual sapato iam usar, ou decidiam usar saias iguais.
Enquanto crescia e aprendia, Luíza ajudava também nas tarefas de casa. As conversas trocadas entre um cômodo e outro, eram compartilhadas com alegria com os irmãos.
— Ela sempre foi uma pessoa muito benquista na família. Ela era alegre e conversava bastante. Éramos uma família muito grande de irmãos e todos se davam muito bem, era um convívio muito bom — recorda a irmã de Luíza.
Quando tinha cerca de 30 anos, um desentendimento com a família foi decisivo para Luíza deixar para trás a cidade onde cresceu e as pessoas que conhecia para dar início à uma vida diferente em outro lugar.
A vida no Hotel Pieta
Os parentes de Luíza e os funcionários do Hotel Pieta, onde ela viveu nas últimas quatro décadas, em Garibaldi, não sabem dizer por onde ela passou antes de chegar à cidade serrana. Aos olhos dos ex-colegas de trabalho ou das pessoas com as quais tinha convívio esporádico, Luíza sempre foi uma pessoa tímida, reclusa, de pouca conversa. Conforme lembra um funcionário do setor de serviços gerais do hotel, que conhece Luíza há quase 30 anos, a história que soube sobre ela começa com a informação de que trabalhava em outro hotel, cinco anos antes de chegar no Pieta.
Mantendo a timidez descrita pela família, segundo o ex-colega de trabalho, ela sempre foi uma pessoa discreta e de falar pouco. Nos momentos em que era questionada sobre a família ou cidade de origem, Luíza se retraia e afirmava que não tinha qualquer parente ou lugar para ir, além do hotel. A presença dela no estabelecimento, como lembra o homem, era vista pelos demais funcionários como se Luíza fizesse parte da família Pieta.
O homem conta ainda que a antiga proprietária, Delfina Pieta, que faleceu em 2015, chegou a acionar a prefeitura de Garibaldi, para solicitar um lugar para a mulher viver, mas não teve qualquer resposta. A reportagem questionou a prefeitura sobre esse pedido, mas não teve retorno até esta publicação.
Os dias de Luíza no hotel e na cidade eram vistos por vizinhos do local como comuns. A mulher sempre aparecia varrendo a calçada em frente ao estabelecimento e atravessando a rua com sacolas do mercado que fica no outro lado da via.
Uma empresária que tem um estabelecimento nas redondezas costumava ver Luíza diariamente e, às vezes, conversava com ela.
— Nós sempre nos cumprimentávamos. Bom dia. Boa tarde. Será que chove? Essas coisas do dia a dia. Ela sempre me pareceu estar bem. Quando eu a via varrendo, estava sempre usando roupas comuns, nunca vi com o uniforme do hotel ou fazendo serviço pesado. Parecia que ela fazia aquilo para passar o tempo. Não sei como era lá dentro, mas pelo que a gente via, ela vivia muito bem ali — pondera a comerciante.
Outro homem que tem estabelecimento perto do hotel conta que Luíza gostava de ser independente e fazer as coisas sozinha.
— Sempre a via varrendo a calçada aqui na frente e, às vezes, a gente oferecia uma pá para ajudar a recolher a sujeira. De vez em quando ela aceitava, mas na maioria das vezes recusava qualquer ajuda. A gente sempre via com os cabelos pintados e roupa limpa. Ela parecia ser uma pessoa bem cuidada e bem vaidosa — afirma o homem.
A descrição do ex-colega de trabalho remete que, por opção, Luíza demonstrava gostar de viver no silêncio da própria companhia e com o pouco que tinha. Segundo o funcionário, roupas e calçados eram oferecidos por instituições da cidade e a mulher costumava recusar os itens.
— Às vezes, eles vinham trazer aqui no hotel e ela olhava e até ficava com algum chinelinho, mas quase sempre devolvia tudo e não queria nada das doações — lembra o funcionário.
O homem fala que Luíza tinha livre acesso às dependências do hotel, era vista por ele escolhendo ingredientes na cozinha para preparar a própria comida no cômodo separado onde vivia. O homem lembra que ela preferia comer o tempero da própria comida.
Nos anos em que esteve no hotel, Luíza morou em diferentes espaços, conforme o funcionário. Acompanhando as novas instalações que eram abertas no estabelecimento, foi sendo realocada até chegar no ambiente em que foi encontrada pela Polícia Civil, umas peças improvisadas no térreo nos fundos do prédio. Segundo o advogado Flávio Green Koff, que representa o Hotel Pieta, Luíza era tratada pelos proprietários como alguém da família. A mulher teria sido acolhida pela antiga dona e foi mantida nas dependências pelos filhos depois do falecimento da proprietária.
Nos dias atuais
Quando foi encontrada, no fim de janeiro, Luíza, já com 73 anos, foi levada à casa de parentes em Cachoeirinha. Atualmente está morando na residência de uma sobrinha, em Gravataí, região metropolitana do Estado. Como nunca teve qualquer documento de identificação, um dos primeiros procedimentos na "nova vida" foi fazer o Cadastro de Pessoa Física (CPF) e a carteira de identidade. Ela também já fez vacina. Atualmente, a idosa está recebendo auxílio de assistentes sociais e da família.
Em paralelo a todo o processo de readaptação ao convívio familiar, Luíza é personagem central em investigações da Polícia Civil e do Ministério do Trabalho e Emprego que apuram as condições em que ela viveu nas últimas décadas no hotel. No dia 17 de fevereiro, a investigação do MTE apontou que a mulher vivia em condições semelhantes à escravidão. O órgão investigou se a idosa permaneceu exercendo atividades no local após a rescisão do contrato no ano 2000, a remuneração que ela recebia e quais eram as condições de vida para determinar a situação de analogia. A Polícia Civil segue investigando se ela era submetida a maus-tratos.