A recente onda de homicídios em Farroupilha tem a mesma explicação, segundo as forças policiais, de tantos outros aumentos de assassinatos no Rio Grande do Sul: a disputa entre facções. São duas organizações criminosas que surgiram anos atrás na Região Metropolitana, mas cujas ramificações disputam pontos de tráfico em municípios por todo o Rio Grande do Sul. A guerra da vez, na Serra, é pelo domínio do chamado Núcleo SFAN, no bairro São José, em Farroupilha.
O Núcleo SFAN surgiu de uma invasão, que já foi regularizada, mas manteve as ruas estreitas e sem calçadas. A falta de estrutura dificulta o trânsito de carros, o que agradaria os traficantes que conseguem escapar ao avistar uma viatura policial, segundo fontes da polícia. O histórico de venda de drogas no local virou referência para usuários de drogas e faz com que a prática criminosa persista apesar das ações policiais. O controle desses pontos de tráfico é lucrativo para as facções e, por isso, viram motivo de disputas sangrentas.
— É uma característica urbana peculiar, um vilarejo semelhante a outros lugares ocupados por criminosos. É importante frisar que a maioria dos moradores no Núcleo SFAN são pessoas trabalhadoras, que não estão envolvidas com crimes. São só alguns pontos, que são conhecidos, e já fizemos várias operações. Só quem coordena (o tráfico) já está preso. O trabalho (policial) já foi feito. Só que há uma substituição. A gente prende um (vendedor) vem outro e assume o ponto. Incansavelmente, atacamos estes locais — aponta o delegado Ederson Bilhan, representante da Polícia Civil na cidade.
Uma dessas ações aconteceu na manhã desta quarta-feira (23), quando 60 policiais civis e militares cumpriram 10 mandados de buscas no bairro São José. Sete homens e uma mulher foram presos em flagrante com armas e drogas. A Operação Retorno foi uma resposta das forças policiais para os oito assassinatos registrados neste ano, o que coloca Farroupilha como a cidade mais violenta da Serra em 2022. Para comparação, Caxias do Sul contabiliza sete homicídios no mesmo período.
— O tráfico e estes homicídios (decorrentes) são crimes que, apesar das prisões, a prática não termina. Quando não colocam outro do mesmo grupo para cuidar do ponto, vem um rival e assume. Há muitas questões que envolvem família. É preso o marido, daí a esposa toma conta. Prende a mulher, daí aparece um tio. Há casos de que toda família está no presídio. Com as facções, fica ainda pior. Porque um não quer perder para o outro, o rival. O mais importante é o ponto, e não quem vende — explica o tenente-coronel Luiz Fernando Becker, comandante do 36º Batalhão de Polícia Militar (36º BPM).
As prisões da Operação Retorno confirmaram o que a investigação já apontava: criminosos estão vindo de outras cidades para cometer as execuções na guerra do tráfico. Dos oito presos nesta quarta-feira, quatro eram da Região Metropolitana, das cidades de Sapucaia do Sul, São Leopoldo e Novo Hamburgo.
Nos últimos anos, as duas facções dividiam o núcleo SFAN. Uma organização mantinha pontos de um lado, e a outra do outro. O acordo seria lucrativo para os dois grupos. Contudo, a trégua acabou neste início de ano e foi substituída pela sequência de "acerto de contas" e "olho por olho".
— É rixa, disputa das duas facções por estes pontos de drogas, aí surgem as dívidas e esses acerto de contas entre eles, que é sempre com mortes. O que dizem é que não vai parar. É bem difícil (para os moradores). Não nos afeta diretamente, mas temos medo, né? Que logo não poderemos sair trabalhar, não poderemos levar uma criança para a aula, porque é tiroteio daqui e dali. O que os policiais nos dizem é que é enxugar gelo. Prendem hoje e já soltam amanhã — lamenta um representante do bairro, que prefere não ser identificado.
Além dos assassinatos e de outra tentativa de homicídio, uma casa foi incendiada na Rua Paulo Radaeli na última sexta-feira (18). O local, segundo policiais militares, era o principal ponto de venda de drogas de uma das facções. O incêndio tende a provocar novos desdobramentos violentos. Por isso, a operação desta quarta-feira é considerada apenas o início do trabalho policial.
— A investigação também prossegue para identificarmos os autores dos homicídios. Temos indícios contundentes de quem são, mas precisamos de mais elementos (para indiciamento e pedidos de prisões preventivas). Agora, faremos a análise dos (25) celulares apreendidos na operação de hoje (com os presos por tráfico) — aponta o delegado Bilhan.
Industrial é outro foco das disputas de facções
O único crime deste ano que é considerado solucionado foi o duplo no condomínio popular Morada do Sol, no bairro Industrial. Construído em 2011 por meio do Programa Minha Casa Minha Vida, as três torres com 120 apartamentos foram apresentadas como solução para quem sonhava com a casa própria. Dez anos depois, assim como outros projetos semelhantes em outras cidades, o condomínio sofre com invasões, violência e tráfico de drogas.
— Alguns apartamentos estão ocupados por indivíduos voltados para o tráfico de drogas. Não há, neste momento, uma guerra (entre facções) por lá. Mas, é um problema histórico, semelhante a de outras cidades. O formato de apartamentos, em que os policiais passam na rua e não conseguem enxergar o que acontece (dentro das torres) torna o ambiente propício para a movimentação de traficantes. Mas, isto não significa que não entramos lá quando necessário — aponta o delegado Bilhan.
Por ser um bairro muito extenso, o Industrial ainda possui outras áreas de problema com a violência. São invasões feitas, principalmente, próximos aos trilhos da antiga malha férrea.
— O bairro é bem humilde e tem a região das invasões. Ali é difícil. Quando a cidade é organizada, com ruas identificadas, tu sabe quem mora lá, a qual família pertence. Nestas invasões, não. São becos e vielas, não se sabe quem está lá dentro, quem mora. Tem gente do bem? Sim, tem. Mas também tem muita gente que se esconde. Ninguém entra lá (na invasão). A polícia não vai. A população não caminha, não passa por estes locais. Aí os atos ilícitos acontecem, drogas e roubos, e se escondem nestas invasões — opina um morador, que tem o nome preservado.
A falta de uma organização urbanística agradaria as facções, que estabelecem pontos de venda e depois acabam brigando entre si, levando aos assassinatos em sequência.
— O Industrial é um bairro maior, só que tem muitas invasões. A SFAN (no São José) já é um território marcado (pelo tráfico), infelizmente. Não consideramos o bairro inteiro conflagrado, mas é uma situação pontual nestes conhecidos pontos de venda. Há uma incidência maior (de homicídios) nestes dois bairros, mas é importante frisar que não é em todo o bairro que há problemas — ressalta o comandante do 36º BPM.
A sequência de assassinatos
As oito vítimas em 2022 foram mortas em cinco ataques a tiros. Três desses crimes foram duplos homicídios. A Polícia Civil investiga se algumas das vítimas foram mortas ao acaso.
— Ainda não temos esta resposta com precisão, mas ao que tudo indica dois destes três eventos a intenção era (matar) um só. No mundo do crime, uma forma de, talvez, evitar a punição, é não deixar rastros. Às vezes, a pessoa está ali na hora errada, no local errado e com a pessoa errada e por isso acaba sendo executada. Há indicativos muito contundentes relativos a estes dois duplo homicídios recentes _ pondera o delegado Bilhan.
:: 22 de fevereiro = Ediomar Pirolli dos Santos, 35, foi morto a tiros na esquina da Rua Tercílio de Mello, no bairro São José. Ele estava próximo de uma residência conhecida como ponto de tráfico e que foi um dos alvos da Operação Retorno desta quarta-feira (23).
:: 16 de fevereiro = Elisandra Flores dos Santos, 33, e Daniel Carlos Conceição Ferreira, 37, foram alvejados próximo da meia-noite em uma calçada da Rua Carlos Fanton, no São José, próximo a uma casa conhecida como ponto de tráfico. A residência foi atacada e incendiada por criminosos dois dias depois.
:: 16 de fevereiro = Kevin dos Santos da Silva, 18, e Daniel Rodrigues, 30, foram mortos no pátio do Condomínio Morada do Sol, no bairro Industrial. O autor surgiu a pé de um matagal dos fundos do residencial, por volta das 12h30min. No dia seguinte, um adolescente de 17 anos foi apreendido pela Polícia Civil como suspeito do duplo homicídio.
:: 30 de janeiro = Leocir Alves, 41, foi morto com um tiro no abdômen na Rua Ambrósio Crippa, bairro América. Ele estava em um matagal, ao lado de um condomínio, quando foi alvejado.
:: 22 de janeiro = Laurentina de Fátima Pereira, 59, e Ariomar Rodrigues da Silva, 55, foram assassinados ao lado do carro de Ariomar na Rua João Fabbro Filho, no Monte Pasqual. Segundo a investigação policial, o crime teve origem em uma desavença num bar próximo.