Dois anos depois, os milhares de clientes da Indeal ainda não sabem o que acontecerá com os milhões em reais aplicados no negócio que prometia altos rendimentos. Com sede em Novo Hamburgo, a empresa foi investigada pela Polícia Federal (PF) e Receita Federal por suspeita de fraude em supostos investimentos em criptomoedas na Operação Egypto. Caxias do Sul era a cidade na qual a Indeal mais tinha investidores, com mais de R$ 120 milhões aplicados, segundo apontamentos da investigação na época. O processo ainda não teve nenhuma audiência, mas as manifestações iniciais apontam que os crimes são contra o sistema financeiro, o que significa que a única vítima que deveria ter os valores ressarcidos é a União. No caso, o dinheiro não retornaria aos investidores da Indeal.
Representante de 11 mil clientes da InDeal, a Associação de Investidores de Criptoativos (Assic) solicitou atuar como assistente de acusação no processo que tramita na 7ª Vara Federal de Porto Alegre. O pedido foi negado.
— Existe um entendimento inicial que a vítima é o Estado, e não os clientes. Embora se fale muito de pirâmide financeira, não existe este crime no processo. A acusação é por crimes contra o sistema financeiro, e não da economia popular. (A Indeal foi denunciada por) agir como instituição financeira sem autorização e ofertar acordos coletivos, além de organização criminosa e lavagem de dinheiro. Foi dito que os clientes não são vistos como vítimas. Existe um pedido de perdimento dos bens apreendidos para a União. Não seria devolvido dinheiro para os clientes — aponta o advogado Jean Carlos Carbonera, presidente da Assic.
Este entendimento é semelhante da decisão no ano passado da 1ª Vara Federal Criminal de Vitória (ES) sobre a Operação Orion, que investigou a TelexFree entre 2013 e 2014. Os donos foram condenados por operar uma instituição financeira clandestina que captava, administrava e intermediava recursos de terceiros, mediante processos fraudulentos. A decisão em primeira instância determinou a perda de mais de R$ 6,4 milhões dos réus em favor da União. Há outras ações de clientes que tentam reaver seus valores.
Outra preocupação é que, como ainda está em fase de instrução, o processo da Indeal levará anos para ter uma decisão e os investidores terem uma chance de serem ressarcidos. Diante deste cenário, a Assic buscou uma solução alternativa com empresas internacionais que também trabalham com criptoativos e querem estabelecer este mercado digital no país.
— Estas empresas irão comprar títulos extrajudiciais referentes à dívida destes associados, que irão receber pagamento em criptomoeda. Essas empresas, ao final do processo, irão cobrar da Indeal. É difícil, mas é uma possibilidade (de reaver os valores). É um contrato de risco, pois eles pagarão em criptomoeda e os associados irão ajudar a colocar esssas criptomoedas no mercado brasileiro, que está em criação. Ao invés de aplicar em publicidade, essas empresas irão investir nisso — explica Carbonera.
O advogado concorda que é uma engenharia complexa, mas diz que os associados estão gratos e esperançosos pela construção da solução. O cálculo é que essas empresas internacionais investiriam R$ 400 milhões em criptomoedas nos associados da Assic e um total de R$ 1 bilhão em tecnologia para estabelecer um novo sistema financeiro no Brasil.
— A maioria vê como uma única alternativa, uma solução para receber algo de volta no momento. Não houve nenhuma audiência até hoje e a única manifestação judicial foi no sentido que os clientes não são vítimas. (Estas empresas) estão tentando uma revolução financeira com estas pessoas. Caxias do Sul estará bastante envolvida, por ter mais pessoas envolvidas (pela Indeal), terá um papel importante neste novo ecossistema financeiro — avalia o presidente da Assic.
Os detalhes da proposta e desse investimento para criação deste mercado de criptomoedas no Brasil serão apresentados no dia 25 de maio em um encontro internacional sobre criptoativos. Cabe notar que a regulamentação das criptomoedas no país está em debate por meio de um projeto de lei na Câmara dos Deputados.
Advogado orienta liminares de reserva de valores
Nem todos os clientes da Indeal ingressaram na Assic e buscam a solução extrajudicial. Há também outros que se consideram vítimas e ingressaram com ações individuais na Justiça. O advogado Fausto Pinheiro Santos representa pessoas em 57 processos contra a empresa e afirma que, na maioria, teve liminares favoráveis deferidas. A estratégia foi fazer os pedidos na Justiça de Novo Hamburgo, cidade apontada como sede da empresa nos contratos firmados com os clientes.
— Comprovamos o valor investido e pedimos uma liminar para fazer uma reserva de valores, que é remetida para o processo que está em Porto Alegre contra todos os sócios da Indeal. Estamos ganhando e oficiando a 7ª Vara Federal, que está acolhendo. No futuro, quando for determinado o destino dos valores bloqueados, esses clientes terão a chance de receber — argumenta.
O advogado explica que a decisão não garante 100% a devolução dos valores, mas é um primeiro passo. O processo contra os donos da Indeal tramita em segredo de Justiça, por isso as informações são muitas restritas. Pela quantidade de envolvidos e complexidade da matéria, Santos acredita que levará alguns anos para se ter um desfecho.
— Aqueles que estão com ações preliminares têm muito mais chances de receber do que aqueles que não fizeram nada. Há muitas vítimas que não buscaram auxílio jurídico, diria que mais da metade. Alguns por não acreditar que irão recuperar os valores, outros por considerarem que não vale o incômodo de um processo judicial. Como o Judiciário irá saber que tem valores para repassar? É preciso apresentar e consolidar este crédito — aconselha
Em média, as ações em que Santos atuou são de R$ 55 mil por pessoa. O prejuízo dos clientes dele ultrapassa os R$ 2,7 milhões. Menos de um ano após o escândalo da Indeal, o advogdo lembra que veio a pandemia de coronavírus e aumentou as dificuldades dos clientes da empresa.
— O quanto esta reserva não fez falta para essas pessoas? Temos clientes que fizeram crédito consignado na aposentadoria para investir. Lembro de uma senhora que estava desesperada. Além de perder aquele dinheiro (investido) e o rendimento (prometido pela Indeal), ainda ficou com parcelas a pagar. Também conheço empresários que tiraram o capital de giro de sua empresa para fazer este investimento — conta o advogado, que sustenta que os investidores também foram vítimas da empresa acusada.
Corretor não conta com o dinheiro perdido, mas acredita na Justiça
Entrar com uma ação e acompanhar o processo contra a Indeal é uma atitude considerada necessária para um corretor de imóveis de 33 anos, que pede para não ser identificado. O caxiense repassou R$ 20 mil à empresa acreditando que seriam investidos em criptomoedas e nunca mais teve retorno. No entanto, ele crê na Justiça de alguma forma.
— Já tenho como perdido (esse dinheiro), mas não posso deixar passar em branco. Tenho que fazer algo. É uma atitude, um protesto. Acredito na Justiça, sim. Quero ver condenações e poder recuperar uma parte de todo esse patrimônio desviado. Ainda tenho esperanças — avalia.
O investimento na Indeal aconteceu em um momento difícil da vida do corretor de imóveis. Ele havia sofrido um acidente de trânsito e teve que ficar três meses em casa. Autônomo, o caxiense não tinha uma renda e vendeu seu automóvel.
— Acompanhava alguns amigos que eram investidores, mas tinha um pé atrás. Acho que a necessidade da época me deixou mais vulnerável para cair no golpe. Era uma tentativa de ter uma renda nestes três meses que ia ficar parado. Foram R$ 15 mil e mais R$ 5 mil emprestados de familiares. Era uma reserva e apliquei nessa esperança. Foi um valor que fez muita falta logo depois — lembra.
Menos de 30 dias após o investimento, o corretor viu as notícias da Operação Egypto. Ele lembra que foi um baque.
— Quando vi a notícia, toda a operação policial, percebi que havia caído num golpe e perdido meu dinheiro. Eu tinha esse pé atrás, a ficha caiu na hora — lamenta.
O caxiense relata que foi um momento complicado de sua vida. Ele contou com apoio de familiares e amigos para conseguir empréstimos para pagar sua cirurgia e tratamento decorrentes do acidente de trânsito.
— Gastei com fisioterapeuta, médico, exames, etc. Graças a Deus, tive a ajuda de amigos e familiares. Levei mais de ano para dar esta volta por cima e pagar todo mundo. Fiquei bem desassistido financeiramente. Foi um momento delicado que juntou tudo: o acidente, os cuidados de saúde e esse golpe.
O corretor apresentou toda a documentação sobre os valores deferidos e entrou com uma liminar. A esperança é que Operação Egypto tenha encontrado criptoativos da Indeal que possam estar rendendo e, assim, ressarcir uma parte das vítimas.
— Sempre tive interesse pelo mercado de criptomoedas. Não é algo ilegal ou obscuro. É uma tendência, algo que existe no mundo inteiro. Agora, sei que é preciso fazer um investimento mais consciente, sem intermediários. Eles criam esses contos do vigário para tirar dinheiro das pessoas. Eu era leigo no assunto e caí na conversa.
A reportagem não conseguiu contatar os investigados e seus advogados.
Relembre o caso
Em maio de 2019, a Polícia Federal deflagrou a Operação Egypto, que apontava que a Indeal teria captado cerca de R$ 1 bilhão de clientes dentro e fora do RS, entre fevereiro e maio daquele ano, com promessas de rendimentos de 9% a 15% ao mês no mercado de criptomoedas. Segundo a investigação, a aplicação nas moedas digitais não ocorria e o dinheiro teria sido usado para sustentar uma pirâmide financeira. Os diretores eram suspeitos de usar o dinheiro dos investidores para comprar carros de luxo, imóveis e outros bens.
Caxias do Sul era a cidade na qual a Indeal teria mais investidores no Estado, com mais de R$ 120 milhões aplicados. A empresa contava com três escritórios de representantes na região para captar clientes — duas unidades no bairro Exposição e outra no loteamento Sanvitto.
Na ocasião, a 7ª Vara Federal de Porto Alegre determinou o bloqueio de todos os valores que estivessem nas contas da empresa e seus sócios e também dos bens deles, como imóveis, carros, joias e dinheiro em espécie.
A direção da Indeal negou as acusações e alegou que a operação era uma manobra para impedir o andamento de um negócio que ainda não está regulamentado e é incompreendido pelo próprio governo.
No dia 24 de julho de 2019, a Justiça Federal aceitou a denúncia do Ministério Público Federal (MPF) contra 15 investigados na Operação Egypto. Todos respondem ao processo em liberdade.
A ação tramita na 7ª Vara Federal de Porto Alegre em segredo de Justiça e continua em fase de instrução. O processo eletrônico possui movimentações semanais, mas ainda não foi realizada ou marcada uma audiência. Pela complexidade, especialistas consideram que o processo ainda levará alguns anos.