Emitida em novembro de 2023 e ampliada em janeiro deste ano, a medida cautelar imposta pela Agência Nacional de Aviação Civil (Anac) contra o aeroporto Hugo Cantergiani, em Caxias do Sul, é resultado de problemas não resolvidos ao longo dos últimos anos. É o que apontam relatórios e documentos técnicos da agência que embasaram a decisão. A medida aplicada em novembro impedia que o aeroporto recebesse mais de 31 voos semanais e também proibia a operação de aeronaves maiores do que as que já voavam para a cidade. Como não houve encaminhamento de solução em quatro meses, conforme determinado pelo documento, no fim de fevereiro a restrição foi ampliada em 10%, passando para o limite de 28 voos semanais.
Na prática, a determinação da Anac não interfere nas operações atuais do terminal, uma vez que o número de voos não chega ao limite estabelecido. No entanto, a ação serve como pressão da agência federal para que a solução dos problemas seja finalmente encaminhada após diversas notificações, algumas delas sem retorno.
A quantidade máxima de voos não foi definida por acaso. Isso já era previsto em uma portaria de 2016 que limitava operações em aeroportos brasileiros não certificados, caso do Hugo Cantergiani. O terminal funcionou com restrições semelhantes às atuais até dezembro de 2021, quando uma nova portaria da agência derrubou as restrições. O novo regramento, no entanto, determinava que os gestores dos aeroportos apresentassem, em conjunto com as companhias aéreas, um plano de gestão de risco para operar voos acima do limite e obter a certificação. O documento deve apontar uma série de ações para reduzir ou compensar eventuais riscos de acidentes diante das limitações do complexo.
O plano do aeroporto de Caxias do Sul nunca foi apresentado e essa é uma das principais reclamações dos técnicos da Anac. Em maio de 2022, a agência enviou ofício ao Departamento Aeroportuário do Estado (DAP) — então gestor do aeroporto — cobrando o documento, uma vez que o número de voos estava acima do determinado para operações sem o plano. Segundo a própria a Anac, não houve resposta.
A adoção da medida cautelar atual, contudo, é resultado também de outras constatações de uma fiscalização realizada em setembro do ano passado. Na ocasião, os técnicos do órgão federal observaram que problemas anteriores não apenas persistiam, como novas questões surgiram com o repasse da gestão do aeroporto para o município, em maio de 2023.
Em parecer do dia 10 de novembro, que recomendou a imposição da medida cautelar, a Anac aponta a inexistência de profissionais responsáveis pela segurança operacional, operação aeroportuária e resposta à emergência aeroportuária. Conforme o documento, quando deixou a gestão do aeroporto, o Estado retirou os profissionais que respondiam por essas áreas, fazendo com que uma única pessoa na administração do terminal acumule todas as responsabilidades. Além disso, um episódio peculiar envolvendo um avião chamou a atenção dos fiscais, tanto pela estrutura do aeroporto quanto pela capacitação da equipe.
Incidente aeronáutico
Às 9h do dia 14 de setembro do ano passado, um jato executivo Cessna Citation C550 iniciou o taxiamento para decolar rumo a Chapecó (SC). A bordo estavam os dois pilotos e três passageiros.
Durante o deslocamento para a pista de pouso e decolagem, a aeronave passou por uma grelha de concreto que cobre uma canaleta de drenagem no meio do pátio principal. Com o peso, a peça cedeu e o trem de pouso principal esquerdo do avião ficou preso na vala.
Nenhum passageiro se feriu, mas o caso foi reportado ao 5º Serviço Regional de Investigação e Prevenção de Acidentes Aeronáuticos (Seripa V). A Polícia Federal (PF) também foi acionada e registrou ocorrência, já que a aviação se trata de serviço de regulação federal.
Diante das despesas de realocação de passageiros, deslocamento de equipe e rebocamento da aeronave, entre outros, o município precisou indenizar os responsáveis pelo avião, no início de março, em cerca de R$ 34,6 mil. Em documento interno do processo de liberação da despesa, a administração do aeroporto afirma que o DAP nunca contratou a manutenção da canaleta.
O episódio ocorreu no último dia de fiscalização da Anac no aeroporto e chamou a atenção dos técnicos da agência porque, além do problema estrutural, a equipe não possuía cadastro e nem instruções para reportar o caso no sistema da agência. Segundo o parecer "é esperado que os envolvidos tenham condições de realizar esse tipo de pedido sempre que for necessário, já que estas solicitações são previstas como responsabilidade do profissional responsável pela operação aeroportuária".
Além disso, o relatório da fiscalização afirma que a fragilidade da grelha já havia sido constatada pelo aeroporto. Por conta disso, os aviões comerciais que estacionavam na posição dois do pátio eram rebocados diretamente para a pista de pouso e decolagem, para evitar passar sobre a estrutura.
Sinalização, pista e seção dos bombeiros
A inspeção da Anac também constatou problemas estruturais importantes no aeroporto. A agência apontava desde abril de 2022 rachaduras no pavimento da pista de pouso e decolagem e dificuldades no controle de fauna, entre outras questões. A vistoria do ano passado apontou não apenas a permanência das rachaduras (o aeroporto chegou a fechar por um dia por conta de buracos na pista em novembro), como uma inconsistência na pintura da pista, realizada em junho do ano passado.
Embora o parecer não indique risco grave e iminente de acidentes, o apontamento é de que a sinalização foi realizada seguindo normas antigas de regulamentação, que já não estão mais em vigor. Segundo a agência, "da forma como foi executada, a sinalização da zona de toque dos aviões pode induzir um pouso longo que poderia resultar em uma saída de pista".
A fiscalização registrou ainda a existência simultânea de outras condições de risco no aeroporto, como pista curta e estreita, sem área de escape e em terreno elevado, daí a importância de um plano de gestão de risco para o terminal.
Os técnicos também constataram problemas na seção de combate a incêndios do aeroporto, atualmente sob gestão do 5º Batalhão de Bombeiro Militar (5º BBM). Conforme o relatório da inspeção, entre as questões identificadas estavam:
- Sistemas inoperantes em caminhões e rachaduras em uma cisterna subterrânea que impedem o estacionamento do principal caminhão no ponto de acesso mais fácil aos bombeiros.
- Os veículos só podem ser estacionados de ré para o reabastecimento de água, o que poderia atrasar o procedimento.
- Em um depósito da seção de combate a incêndio, foram localizados 40 litros de material extintor do tipo Líquido Gerador de Espuma (LGE), quantidade considerada insuficiente. Além disso, todo o estoque de Pó Químico (PQ), outro produto extintor estava vencido.
- Não foi possível constatar o funcionamento de um serra circular, utilizada para corte de metais pesados, porque o equipamento estava sem gasolina e também não havia estoque de combustível na unidade.
- Foram encontrados rasgos em parte dos uniformes utilizados em combate a incêndio.
Diante das constatações, o parecer da agência alerta para "inúmeras não conformidades relacionadas ao sistema de proteção e combate a incêndio, de forma que em caso de ocorrência na localidade, as medidas reativas previstas podem não ser efetivas para mitigar essas consequências".
"Algumas ações vão levar mais tempo, mas outras serão imediatas"
Na época da troca de gestão do aeroporto do Estado para o município, a prefeitura de Caxias cogitou a contratação da Infraero, empresa que possui mais de 40 anos de experiência na administração de terminais aéreos. A estatal chegou a enviar proposta para o município, mas a avaliação da gestão municipal era de que não seria vantajoso e nenhuma tratativa ocorreu após dezembro de 2023, segundo a empresa.
— A Infraero queria cobrar para operar o aeroporto sem investimentos. Nós estamos administrando sem pagar nada e vamos investir com recursos do próprio aeroporto — afirma o secretário de Trânsito, Transportes e Mobilidade de Caxias, Alfonso Willembring.
Em ofício encaminhado ao aeroporto em janeiro deste ano, já com a medida cautelar em vigor, a Anac menciona que o município "reconhece a necessidade de capacitação de seus servidores para o atendimento das demandas impostas para a operação, bem como para a garantia da segurança da aviação civil" e diz receber "com satisfação a informação das providências em curso".
A menção da agência se refere à contratação, por parte do município, de uma assessoria técnica para encaminhar a solução dos problemas do terminal. A contratação ocorreu no fim de fevereiro e a empresa começou atuar no início deste mês.
O serviço é composto de 17 itens, que passam por montagem de processo de gestão operacional, elaboração do plano de gestão de risco, além de projetos para recapeamento de pistas e pátios, sinalização e operação da seção de combate a incêndio. Também estão previstos seis meses de consultoria técnica depois que os produtos forem entregues. O custo do contrato é de cerca de R$ 844 mil.
— Algumas ações vão levar mais tempo, mas outras serão imediatas — aponta Willembring.
Apesar de reconhecer que ações foram iniciadas no sentido de melhorar os problemas, a Anac deixa claro que a medida cautelar será suspensa somente quando houver um plano de gerenciamento de risco aprovado.
Contrapontos
A respeito da pintura da pista fora da regulamentação em vigor, o secretário Alfonso Willembring disse que solicitou e recebeu pessoalmente do DAP uma orientação técnica para o reforço da sinalização.
— Houve uma atualização da legislação e foi feita em desacordo, mas não creio que haja necessidade de refazer — afirma.
O comandante do 5º BBM, tenente-coronel Márcio Müller Batista, afirmou que, desde a transferência do aeroporto para o município, aguarda a prefeitura formalizar um convênio para a corporação seguir atuando na unidade de combate a incêndio. Até lá, segundo ele, não é possível fazer investimentos. A prefeitura confirma que está em tratativas para a formalização do convênio. Antes, a parceria não era necessária porque tanto os bombeiros quanto o aeroporto eram de gestão estadual.
— A prefeitura precisa fazer o convênio ou contratar uma empresa que atua com bombeiros de aeródromo — destaca.
Procurado pela reportagem, o DAP disse em nota que "todas as situações e providências adotadas pelo Departamento Aeroportuário (DAP) do Estado foram repassadas ao município quando da transferência da outorga, em 2023". A nota diz ainda que "todos os ofícios encaminhados pela Anac foram respondidos pelo DAP".