Após as restrições da pandemia de coronavírus e as dificuldades de acesso ao sistema do judiciário causadas por um ataque hacker, o Fórum de Caxias do Sul começa a vislumbrar uma retomada da normalidade. O horário de atendimento a operadores do Direito foi ampliado, os prazos de processos físicos foram reiniciados e as primeiras audiências de processos não urgentes estão agendadas para a próxima semana. A Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), contudo, ainda requer a retomada dos trabalhos integrais da Justiça ou, pelo menos, um prazo para isso.
O atendimento ao público no Fórum caxiense está interrompido desde março de 2020, quando os casos de coronavírus começaram a se multiplicar no Rio Grande do Sul. Sem a possibilidade de acesso aos processos e com audiências canceladas, os prazos foram suspensos e as ações ficaram paradas. A estratégia foi acelerar a digitalização dos processos, para que a Justiça pudesse trabalhar virtualmente. Hoje, 60,6% dos 176.792 processos em Caxias do Sul são eletrônicos. Outros 69.650 existem apenas nos arquivos de papel e estão na fila para a digitalização.
O recomeço dos atendimentos, em julho de 2020, foi restrito para advogados, promotores e defensores públicos e em apenas um turno, com atendimento das 14h às 18h. Um ano depois, foram anunciadas novas mudanças.
— O Tribunal de Justiça editou um ato, na semana passada, liberando a designação e realização de audiência presenciais em processos não classificados como urgentes. Considerando que há mais segurança para que se possa retomar a critério de cada magistrado em cada processo a realização das audiências. Faremos com todos os cuidados necessários, observando o distanciamento e as medidas de higiene. Já instalamos, em algumas salas, anteparos de acrílicos para ajudar na segurança de quem tem que participar — aponta o diretor do Fórum de Caxias, juiz João Pedro Cavalli Júnior.
O magistrado reforça que o Fórum disponibiliza álcool gel e desinfetantes, além de exigir o uso de máscara. Como a situação ainda não é de normalidade, a presença das partes de um processo é facultativa, sendo possível a participação por videoconferência daquelas que não se sentirem seguras.
O anúncio, contudo, não satisfaz a subseção da OAB em Caxias do Sul. No mês passado, a entidade enviou, em caráter estadual, um pedido de providências ao Conselho Nacional de Justiça (CNJ).
— O que defendemos é a retomada dos trabalhos integrais do Fórum, o que ainda não tem uma previsão para acontecer. Tudo está voltando à normalidade, guardada as devidas precauções. Não faz o menor sentido ser a única atividade com tantas restrições. E, justamente, ser a Justiça. Está trazendo muitos prejuízos à sociedade — afirma Rudimar Luis Brogliato, presidente da OAB Caxias do Sul.
Tempo não será recuperado, mas sistema virtual é mais ágil
Os 17 meses com restrições e a instabilidade do sistema dos últimos meses após um ataque hacker em maio paralisaram milhares de processos. Esse tempo, segundo juristas, não tem como ser recuperado, afinal os processos precisam respeitar os passos e prazos determinados por lei.
— Os processos têm seu tempo natural de tramitação, cada situação tem suas particularidades. Quanto aos processos físicos, que foram diretamente atingidos pela suspensão de prazos e pelo período de fechamento do expediente externo, não creio que o tempo de atraso possa ser recuperado. A questão da retomada da normalidade significa não uma recuperação de tempo perdido, mas uma efetiva retomada de tramitação dos processos impactados, dos atendimentos presenciais que em muitas situações são necessários — admite o juiz diretor, que ainda explica que valores em decorrência de ganhos de causa terão correção monetária e juros, que correm normalmente no período.
Por outro lado, o otimismo está no avanço do sistema virtual, batizado de Eproc. Além de já estarem em tramitação, os processos eletrônicos são mais rápidos. A agilidade de cada processo deve favorecer o todo, com os juízes e equipes mais livres para audiências e decisões mais complexas.
— Não tem como recuperar (o tempo parado), pois os processos judiciais têm que seguir os trâmites dos códigos (do Direito). Não conseguimos atropelar prazos para compensar esse período que ficou fechado. Os eletrônicos têm rotina muito mais rápida, o que naturalmente irá compensar algum prejuízo (na comparação com antes da digitalização). Por isso, é preciso a retomada integral o quanto antes — ressalta Brogliato.
O presidente da OAB Caxias afirma que o prejuízo não é apenas econômico, o que inclui os pagamentos de advogados e peritos, mas também uma série de situações que as pessoas necessitam de uma resposta da Justiça, como ações de divórcio, heranças e resposta a crimes.
Uma dessas pessoas aflitas com a paralisação da Justiça é o consultor de vendas Alexandre Perini, 49 anos. Em 2013 ,ele trocou a casa da família por um apartamento, no bairro De Lazzer. Acontece que, dois anos após a permuta, ele descobriu que o novo imóvel estava alienado.
— Toda a permuta foi feita de forma transparente, mas essa restrição estava desde 1989, problema de um terceiro dono. Entrei de gaiato na história. Agora, estamos à mercê de um possível leilão do apartamento para pagar essa dívida. É o apartamento que estamos morando e pode ser lacrado a qualquer momento — explica Perini.
O processo teve uma audiência em janeiro de 2020, quando a outra parte se comprometeu a pagar a dívida, contudo ação paralisou em março com a pandemia. Sem a documentação necessária, o pagamento da dívida ainda não aconteceu e o apartamento pode ser confiscado.
— O meu processo não foi digitalizado, daí nem o Fórum nem o meu advogado sabem dizer uma data ou uma previsão. Eles dizem que só estão andando os urgentes (pela lei). Não sei qual é o critério. O lar, a casa de uma pessoa não é urgente? Depois que for lacrado, não teremos o que fazer. É uma espera, uma angústia, uma falta de respeito. A Justiça não parece estar do nosso lado — lamenta o consultor.
Obra de igreja aguarda a Justiça após construtora alegar falência
Quem também aguarda uma decisão da Justiça são as comunidades dos bairros Colina do Sol e Vila Ipê, zona norte de Caxias. São mais de 500 moradores que sonham com a construção de uma igreja perto de casa. A obra foi iniciada em 2013, mas a construtora contratada alegou falência.
— Contratamos uma empresa de Arroio do Meio, que montou essa base, mas depois faliu e o dono desapareceu. Entramos na Justiça, comprovando todos os pagamentos feitos. São quase R$ 50 mil. São duas frustações. Uma é não ter a nossa igreja. A outra é essa demora da Justiça em nos ajudar — lamenta Antônio Argenta, 69 anos, presidente da comissão da obra.
O caso demonstra a demora da Justiça, que há oito anos não consegue dar uma respostas para as comunidades da Zona Norte. Neste período, os fiéis fizeram campanhas e arrecadações para poder celebrar as missas. Os encontros acontecem na parte de baixo da estrutura, que originalmente seria um salão paroquial.
— Fizemos campanhas para fechar (as paredes), colocar as janelas e o piso, reforçar as vigas. A igreja era para ser na parte de cima, mas estamos usando aqui. Todo final de semana tem atividades, inclusive a catequese das crianças. Só que é frio e tem goteiras. Se chove, precisamos vir antes para fazer uma limpeza e tentar secar para receber as pessoas — lamenta Argenta.
O processo, que já estava lento, paralisou a partir da pandemia. A última informação da comunidade é que falta uma assinatura do juiz para que o processo seja publicado no Diário Oficial e as partes se pronunciem.
Enquanto isso, a estrutura inacabada e os materiais conseguidos pela comunidade estão se deteriorando. O sonho de ter a Igreja Católica da Comunidade Coração de Maria parece cada vez mais distante.