O Ministério Público Federal (MPF) ajuizou três ações civis públicas para questionar a concessão à iniciativa privada das Florestas Nacionais (Flonas) de Canela e de São Francisco de Paula sem prévia apreciação da questão fundiária envolvendo as comunidades indígenas das etnias kaingang e xokleng. Ambas as tribos aguardam há anos por estudos da Fundação Nacional do Índio (Funai) para comprovar e recuperar a terra de seus antepassados. Na Justiça Federal, o MPF exige que a União e a Funai realizem estudo antropológico para identificação e delimitação de áreas tradicionais.
As três ações foram ajuizadas em Caxias do Sul. As duas primeiras têm por objetivo requerer estudos antropológicos na Flona de Canela, que é reivindicado pela Comunidade Kaingang Kógunh Mág/Jagtyg Fykóg, e na Flona de São Francisco de Paula, de interesse da Comunidade Xokleng Konglui. Na terceira ação civil pública, o MPF pede que a Justiça Federal determine que a autarquia gestora Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) realize a consulta e o consentimento prévio, livre e informado às comunidades indígenas como condição de validade dos processos de concessão à iniciativa privada, uma vez que esses povos são passíveis de serem diretamente atingidos por tais concessões.
Os indígenas da etnia xokleng aguardam uma resposta da Funai desde 2012. O trâmite está ainda na fase de qualificação, etapa preliminar do procedimento demarcatório de terras, portanto anterior ao início dos estudos antropológicos.
— A inércia da Funai está intensificando o conflito entre os xokleng e o ICMBio, autarquia gestora da Floresta Nacional de São Francisco de Paula, que ajuizou uma reintegração de posse em virtude da ocupação da floresta realizada pelos indígenas em dezembro de 2020 — alerta Luciana Guarnieri, procuradora da República e autora das ações.
A reivindicação dos kaingang também está ainda na fase de qualificação. Acampados na Floresta Nacional de Canela, as famílias aguardam o início dos estudos para identificação e delimitação de sua terra tradicional. Antes da deflagração da pandemia da covid-19, as famílias da comunidade kaingang de Canela residiam, de forma precária, às margens da rodovia RS-235, no intuito de acompanhar a realização dos trabalhos da Funai.
Segundo a procuradora Luciana Guarnieri, o ICMBio, mesmo ciente das reivindicações dos grupos indígenas, lançou os editais de licitação sem que houvesse consulta e consentimento prévio, livre e informado (CCPLI) dos povos, em desobediência ao disposto no art. 6º da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), não restando alternativa senão judicializar a demanda.
A 3ª Vara Federal designou duas audiências de conciliação, de forma virtual, para a tarde de 16 de agosto — cada audiência referente à ação de cada floresta. Tanto a Funai, que aparece como réu, quanto o ICMBio, como parte interessada, foram intimados e ainda não se manifestaram nos processos.
As Flonas são unidades de conservação de uso sustentável, sendo permitidas a pesquisa científica, a visitação e a manutenção de populações tradicionais, conforme disposto na Lei n. 9.985/2000, que instituiu o Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza.
Contrapontos
A reportagem enviou questionamentos por e-mail à Funai na última segunda-feira (12) sobre o andamento dos estudos antropológicos e a ação ajuizada pelo MPF. A Funai confirmou recebimento do e-mail no mesmo dia, mas não houve manifestação sobre o tema. Questionada novamente nesta sexta-feira (16), a assessoria da Funai respondeu que ainda busca resposta à demanda.
O ICMBio, por sua vez, se posicionou por meio da nota abaixo:
"Os projetos de concessão da Floresta Nacional de São Francisco de Paula e da Floresta Nacional de Canela foram pautados em procedimentos técnicos e em obediência aos preceitos legais pertinentes, assim como no amplo atendimento aos princípios que regem a Administração Pública, passando pela análise e aprovação do Tribunal de Contas da União para avaliação da qualidade dos estudos e da legalidade do processo, inclusive quanto aos aspectos ambientais e socioambientais.
Frente a questionamentos quanto ao andamento do processo, a 3ª Vara Federal de Caxias do Sul decidiu, dia 7 de julho, que o ICMBio pode dar sequência aos processos de concessão das Florestas Nacionais em comento.
Nesse sentido o ICMBio prosseguirá com o processo licitatório cumprindo todas as determinações judiciais, com a devida segurança técnica e jurídica, dando continuidade ao processo participativo junto às comunidades locais e regionais, incluindo indígenas.
O desenvolvimento ordenado do uso público nas unidades de conservação, além de potencializar a proteção ambiental, colabora com o desenvolvimento socioeconômico, o contato com culturas e tradições locais e promove a sensibilização da população para as questões ligadas ao meio ambiente. "
Kaingang na Floresta Nacional de Canela
Os integrantes da comunidade kaingang reivindicam, desde 2006, o reconhecimento de área dentro da Flona de Canela como território tradicional indígena. A Funai tem conhecimento oficial dessa reivindicação desde, pelo menos, 2008 e, segundo o MPF, manteve-se inerte, apesar dos seguidos episódios de ocupação da floresta pela comunidade kaingang, os quais resultaram em quatro ações possessórias ajuizadas pelo ICMBio.
A mais recente ocupação da Flona de Canela pelas famílias Kaingang Kógunh Mág/Jagtyg Fykóg ocorreu em julho de 2018. A Justiça Federal determinou a reintegração da posse ao ICMBio em agosto daquele ano, ocasião em que a Funai iniciou a qualificação do pleito da comunidade kaingang, que constitui etapa preliminar à formação do grupo técnico que dará início à fase de identificação e aos estudos propriamente ditos.
Desde 2008, a comunidade indígena de Canela permaneceu a maior parte do tempo acampada nas margens da rodovia RS-235. Entretanto, no início de 2020, foi permitido às famílias kaingang se instalarem no interior da Flona, em razão das medidas sanitárias contra a pandemia da Covid-19.
Os kaingang argumentam que seus antepassados já moraram na região. Eles desejariam ficar em uma área de 100 hectares de mata nativa. Em 2015, um grupo de mais de 50 indígenas foi retirado por decisão judicial. Outra ordem judicial aconteceu em 2018, quando foram afastados cerca de 30 kaingang. Em 2020, seis indígenas, acompanhados de quatro crianças, retornaram à área.
Em 2020, uma pesquisa sobre os indígenas em Canela foi liderada pelo historiador ligado à Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Guilherme Maffei, e apontou vestígios arqueológicos dentro da Flona.
Xokleng na Floresta Nacional de São Francisco de Paula
A reivindicação da comunidade Xokleng Konglui é do conhecimento da Funai desde 2010. Em 2012, a Funai iniciou o processo de qualificação dessa comunidade indígena. A etapa de qualificação é preliminar aos estudos de identificação e delimitação. A demanda pelo reconhecimento das terras como tradicionais indígenas foi formalizada pelo líder Veitxa Uvanhecu Teie, descendente da família da Vó Bugra, indígena nascida no final da década de 1840 e que residiu em área que engloba terras da Flona de São Francisco de Paula e adjacentes.
Atualmente, o grupo Xokleng Konglui é liderado pela cacica Kullung Vei-Tcha Teia e pelo cacique Woie Kriri Sobrinho Patte, filha e neto de Veitxa Uvanhecu Teie, que faleceu em 2018.
Desde dezembro de 2020, as famílias indígenas Xokleng estão acampadas às margens da rodovia RS-484, em São Francisco de Paula, após terem desocupado a Floresta Nacional em virtude de decisão judicial proferida em ação de desapropriação interposta pelo ICMBio.
Esse mandado de reintegração de posse foi publicado às vésperas do Natal, no dia 23 de dezembro. O ICMBio, órgão do governo federal, argumentava que a presença dos indígenas estava dificultando ou impedindo a plena gestão da unidade de conservação, indicando risco de arrombamento e ocupação dos mais de 30 imóveis localizados no interior da unidade.
Na época, estavam acampados cerca de 30 indígenas, dentro os quais, aproximadamente quatorze crianças. Vindos de Ibirama, em Santa Catarina, o grupo formado por 12 famílias se havia se instalado na floresta em 12 de dezembro.
Os pedidos formais à Funai para que sejam feitos estudos da demarcação de terra dos antepassados xokleng datam de 2010, 2016 e 2018.
Propostas para concessão foram abertas neste mês
A concessão das florestas nacionais da Serra acontecem por meio do Programa de Parcerias de Investimentos (PPI) do governo federal. O edital da Flona de Canela teve a abertura dos envelopes das propostas na última segunda-feira (12), contudo não foram divulgados resultados. Neste momento, é feita a verificação da habilitação técnica para permitir a assinatura do contrato de concessão — etapa sem prazo divulgado.
No evento de abertura das propostas, o diretor de programa do PPI, Alceu Justus Filho, ressaltou que “o projeto é muito importante, porque conseguimos trazer, por meio da parceria com a iniciativa privada, uma gama de investimentos para essas unidades de conservação, trazendo um equipamento público para a população e uma boa qualidade na prestação de serviços para o usuário”.
A apresentação do edital descreve que a Flona de Canela tem uma área de 557 hectares, com altitudes que chegam a 840 metros, e está localizada na principal rota turística do Sul do Brasil, a Serra gaúcha. O edital destaca que a Flona tem vocação para o turismo de aventura.
O projeto prevê mais de R$ 9 milhões em investimentos já nos dois primeiros anos de contrato, e, ao todo, entre investimentos em instalações físicas e operação dos serviços de apoio à visitação nas florestas ao longo do contrato, o valor estimado ultrapassa os R$ 90 milhões. O prazo de contrato é de 30 anos.
Já o edital para concessão da Flona de São Francisco de Paula foi publicado no dia 21 de maio e prevê a abertura das propostas para 26 de julho. O prazo de contrato também é 30 anos.
A apresentação aponta que a floresta tem uma área de 1.606 hectares, com altitudes superiores a 900 metros, numa rota que recebe anualmente 2,5 milhões de turistas.
O projeto prevê mais de R$ 4 milhões em investimentos já nos dois primeiros anos de contrato, e, ao todo, entre investimentos em instalações físicas e operação dos serviços de apoio à visitação na floresta ao longo do contrato, o valor estimado ultrapassa os R$ 70 milhões.
Ações Civis Públicas ajuizadas em Caxias do Sul:
ACP 5003684-77.2021.4.04.7107 – Requer realização de estudos antropológicos – Reconhecimento de terras tradicionais indígenas na Floresta Nacional de Canela. Reivindicação da Comunidade Kaingang Kógunh Mág/Jagtyg Fykóg;
ACP 5009277-87.2021.4.04.7107 – Requer realização de estudos antropológicos – Reconhecimento de terras tradicionais indígenas na Floresta Nacional de São Francisco de Paula – Reivindicação da Comunidade Xokleng Konglui;
ACP 5009235-38.2021.4.04.7107 – Requer realização de consulta prévia, livre e informada com as comunidades indígenas Kaingang KógunhMág/Jagtyg Fykóg e Xokleng Konglui, nos termos da Convenção 169/OIT, como condição de validade dos processos de concessão à iniciativa privada da Floresta Nacional de Canela e de São Francisco de Paula.