Faz um ano que três fiscais ouvidas pela reportagem, atuantes na linha de frente no combate às aglomerações em Caxias do Sul, saem de casa somente para trabalhar, não se divertem e não veem parte da família por medo de colocar as pessoas que amam em risco de contaminação.
As três integram um grupo de 13 fiscais que, juntos, respondem por todas as situações de denúncias de junção de pessoas na cidade. Nenhuma foi contaminada pela covid-19, diferente de outros quatro positivados e tantos suspeitos em meios aos trabalhos que oferecem segurança à população, mas riscos a cada um deles. Elas chegam em casa madrugada adentro depois de, por exemplo, terem encerrado festas clandestinas com mais de 300 pessoas sem máscara. As três são servidoras e mães. Os nomes das entrevistadas não serão divulgados no intuito de preservá-las, porque são comuns os ataques com xingamentos e cobranças indevidas.
Há cinco anos, Beatriz (nome fictício), 40 anos, é servidora da prefeitura de Caxias e, há três, ligada à Secretaria de Urbanismo — pasta responsável pelas fiscalizações. Desde março de 2020 viu sua rotina mudar completamente. A equipe passou a ter duas escalas, uma para seguir cumprindo o trabalho já habitual e outra para se dividir nas abordagens, principalmente noturnas e aos finais de semana.
— Temos que cumprir com a nossa missão até para darmos um suporte para os profissionais da saúde que estão nessa luta incansável para salvar vidas. Fazemos parte de todo esse processo. Ao mesmo tempo que o Estado pede que a população circule menos, a fiscalização é requisitada para se apresentar no maior número de locais possíveis — afirma.
Desde que começou a atuar nas ruas, Beatriz vivenciou inúmeras situações de abordagens diretas aos desrespeitadores da lei. Segundo ela, o perfil de festas clandestinas em locais afastados tem basicamente público jovem presente. Já em bares localizados em bairros, é de idosos.
— Amedronta e decepciona! Ficamos muito preocupados porque são lugares sem qualquer tipo de cuidado, com pessoas sem máscara e consumindo bebida alcoólica. É como se não tivesse pandemia! Não entenderam o quanto o número de mortes, de vidas perdidas, é cruel— cita ao lembrar que precisa entrar em contato com as pessoas para notificá-las, o que exige proximidade para coleta de assinatura do imprudente.
"Desesperadora a sensação de impotência. Ao mesmo tempo que choca, o peso da responsabilidade do nosso cargo nos convoca a agir"
BEATRIZ
Fiscal da prefeitura
Um dos casos que ilustra bem o que Beatriz relata é um flagrante que aconteceu a uma praça do bairro Cidade Nova em meio à classificação em bandeira preta. Duzentas pessoas estavam reunidas no local.
— É desesperadora a sensação de impotência. Ao mesmo tempo em que choca, o peso da responsabilidade do nosso cargo nos convoca a agir. A negação das pessoas? Vendo tudo o que está acontecendo e não se convencem — diz.
Outra fiscal que compartilha do que diz Beatriz é Alice (nome fictício), 47. Ela também atua no front dos descumprimentos sanitários em Caxias. Está na prefeitura há quase quatro anos. Ela lembra que, em um dos casos em que fez a notificação, as pessoas passaram a aplaudir a equipe assim que os fiscais viraram as costas, ao término da autuação.
—Aplaudiram porque fomos embora, ironicamente! Essas coisas nos afetam, ficamos chateadas. Sabemos que os decretos estão tentando diminuir o caos e isso é um desrespeito tanto ao profissional quanto a ser humano que está ali, com medo de levar o vírus para casa. Esse medo é constante — diz.
Noemi (nome fictício), 38, é servidora do município há três anos e às vezes se percebe pensando o motivo de as pessoas não respeitarem as regras de distanciamento.
— Um anos depois ainda não aprenderam a usar uma máscara! Às vezes chegamos em locais que dá uma angústia de entrar. O ar 'viciado', sem circulação. E temos que entrar e dispersar, além de ficar e notificar o responsável — conta.
Xingamentos e argumentos contra os fiscais
Ao mesmo tempo em que há pessoas denunciando as aglomerações, há os xingamentos, por aqueles que estão insatisfeitos com o trabalho dos fiscais. Para Beatriz, é comum usarem palavras ofensivas e negar a situação.
— Cada um acredita que o seu caso tem alguma justificativa. Sentem-se perseguidos ou acreditam que existe uma intenção de prejudicá-los. Recorrem ao fator político, mesmo sabendo que estão descumprindo (a regra) — cita.
Uma vistoria que realizada no bairro Desvio Rizzo é guardada na memória de Beatriz. As pessoas viram os fiscais e correram para uma casa aos fundos.
— Quando entramos, havia em torno de 30 pessoas. Já quando as forças de segurança fizeram a evacuação do espaço, apareceram outras. No total foram mais de 70 pessoas no lugar. Estavam escondidas em um espaço com janelas fechadas e cobertas por um tecido preto. Não havia ventilação e as pessoas fumavam e consumiam bebida lá dentro. Tenho feito um trabalho mental de tentar não entender o motivo de as pessoas agirem desta forma porque, se não, é enlouquecedor — diz.
"Vi aquele mar de gente saindo e me perguntei: será que estamos vivendo no mesmo mundo?"
ALICE
Fiscal da prefeitura
Alice conta que percebe muita hostilidade.
— A pessoa, quando desrespeita as regras em meio a uma pandemia, já tem uma mentalidade de falta de noção do que está acontecendo, então quando vê a fiscalização é como um inimigo.
Conforme Alice, há abordagens em que a pessoa simplesmente não faz nada após a ordem de colocar a máscara.
— Isso porque ela nem tem a máscara, sai sem mesmo. Nos dizem muito que deveríamos estar prendendo bandido (prisões são efetuadas apenas pela polícia)— cita.
O contrário também acontece, conta Noemi.
— Se a pessoa denuncia e a fiscalização não ocorre quando ela quer, também acha ruim. Estamos sempre no bombardeio. Agora, chega um ponto que acabamos rebatendo depois de ouvir tantos absurdos, claro que dentro das nossas atribuições. Também costumam comparar a sua irregularidade com os supermercados (considerando que representa o mesmo risco de contágio) —cita.
Ela lembra que já presenciou situações em que viu 300 a 400 pessoas saindo de locais internos de casas noturnas, em período de bandeira laranja:
— Vi aquele mar de gente saindo e me perguntei: será que estamos vivendo no mesmo mundo e no mesmo momento?
Riscos à família e mudanças no convívio
Beatriz mora com o marido e o filho de sete anos. O cronograma da família foi alterado não apenas pelas aulas, que deixaram de ser presenciais para o filho, mas pelos horários de Beatriz, que adentram a madrugada semanalmente.
— Percebi que a inteligência emocional nesse momento é um fator preponderante. Passei a fazer meditação para ter um equilíbrio, tento fazer atividade física também para não deixar minha saúde ser afetada. Se eu faltar com o meu trabalho, será um grande impacto. A rotina ficou totalmente modificada. Focamos nas escalas de trabalho e nos privamos de ficar com a família, de dar atenção, de ter um convívio maior.
Para Alice, que mora com o filho de 16 anos, e precisa de cuidados por ter Síndrome de Down, foi necessário contratar uma pessoa para dar apoio a ela principalmente nas noites em que chega às 2h, 2h30min. Alice conta que, diferente de pessoas que se encontram em pequenos grupos — mesmo que dentro das regras, dependendo a classificação de contágio — ela não o faz. Não visita a mãe, que mora em Porto Alegre, há cerca de um ano:
— Não vejo mais ninguém. É do trabalho para casa e de casa para o trabalho. Shopping, por exemplo, tenho até medo de ir porque ficamos com a consciência pesada mesmo. Respeitamos tudo e ainda muito mais.
"A tensão nunca mais nos deixou. Agora uso máscara dentro e fora de casa"
NOEMI
Fiscal da prefeitura
Noemi mora com o marido e o filho de três anos. Neste ano, a sogra também integrou-se ao núcleo familiar, o que faz com que ela redobre os cuidados especialmente ao chegar em casa:
— A tensão nunca mais nos deixou. Agora uso máscara dentro e fora de casa. Chego, tiro os sapatos, vou direto para o banho e já coloco as roupas na máquina.
Questionada sobre ter pensado em desistir, Noemi não titubeia:
— Nunca pensei. O que a gente faz reverte em benefício para a sociedade, para a nossa cidade.
Se não bastasse a luta diária dos profissionais, há denúncias falsas chegam constantemente aos canais oficiais da prefeitura. Segundo o diretor de Fiscalização, Rodrigo Lazzarotto, em entrevista à rádio Gaúcha Serra em 13 de março, os fiscais perdem tempo indo a locais cuja denúncia se mostra enganosa.
— Recebemos denúncias falsas e depois ainda retornam usando termos como 'otários' — contou na ocasião.
:: Em tempo: os fiscais defendem entrar nos grupos prioritários para recebimento da vacinação contra a covid-19, o que ainda não foi definido pelas autoridades competentes.