Um mercado, na área central de Caxias do Sul, é o caso mais evidente na cidade de desrespeito às regras determinadas pelo decreto estadual, que suspendeu todas as atividades entre 20h e 5h. A medida adotada para reduzir a circulação de pessoas nesse horário e, com isso, conter a disseminação do coronavírus, começou a vigorar em 23 de fevereiro e vale pelo menos até 31 de março.
Os estabelecimentos do setor de alimentos podem atuar com telentrega, mas não podem atender no sistema pegue e leve. E é exatamente esse último o método adotado pelo Sacolão Noite e Dia 24 horas, que fica na Avenida São Leopoldo, no bairro Exposição, para seguir funcionando além do horário permitido, enquanto os demais estão com portas fechadas no município.
Nas últimas semanas, as câmeras de monitoramento do condomínio onde o mercado está localizado flagraram o atendimento de clientes depois das 20h, diariamente. Em dois dos vídeos, policiais militares vão ao local, mas não agem para impedir o funcionamento. Em um dos casos, a ida ao mercado é para fazer compras.
Na segunda-feira, a reportagem também flagrou o Sacolão atendendo a clientes pela janela entre 20h e 21h. Uma parte do decreto permite que as pessoas que já estiverem dentro do estabelecimento tenham até as 21h para terminar as compras e sair. Porém, o que se verificou é que a partir das 20h o mercado passou a atender no sistema pegue e leve. Por volta das 20h45min as luzes internas foram apagadas e os funcionários continuaram atendendo quem chegasse. Nesse momento, uma pequena fila chegou a se formar em frente ao local. Todos foram atendidos. Mais tarde, às 23h, ainda havia carros estacionados em frente ao mercado que estava com as luzes acesas e a porta entreaberta, conforme as imagens das câmeras.
Para driblar a fiscalização e escapar dos flagrantes, um homem, que teria sido contratado pelo Sacolão, costuma ficar em frente ao estabelecimento à noite para avisar quando a fiscalização ou Guarda Municipal se aproxima. Em uma das imagens do condomínio, ele aparece com um rádio comunicador pendurado no pescoço. Um dos vídeos gravado no dia 2 de março, às 21h18min, mostra exatamente o momento em que ele visualiza uma viatura vindo, avisa quem está dentro do mercado, vai até o cliente que está sendo atendido e ambos se afastam. As luzes são apagadas. Quando a viatura se distancia, o cliente volta para terminar a compra.
Na quinta-feira, da semana passada, um vídeo mostra um cliente sendo atendido, às 22h12min, quando a fiscalização chega e as luzes são apagadas. Durante a ação dos fiscais, segundo a prefeitura, um homem, que se apresentou em outras ocasiões na prefeitura como responsável pelo mercado, fugiu do local. Ele foi seguido pelos agentes e abordado no pátio do 12º BPM. Dali, foi encaminhado para a delegacia de Polícia Civil para o registro de ocorrência por infração de medida sanitária preventiva. No boletim, ele informou que era consultor do Sacolão e que fugiu por medo. Já os três funcionários do mercado disseram que ele seria o gerente do estabelecimento, conforme o registro policial.
A fiscalização da prefeitura admitiu que fez tudo o que poderia ser feito na esfera administrativa em relação ao Sacolão. O descumprimento de regras por parte do estabelecimento começou cerca de dois meses antes da pandemia, quando ele iniciou atividades sem alvará de localização (documento por meio do qual a prefeitura permite o funcionamento).
Segundo Rodrigo Lazzarotto, diretor de Fiscalização da Secretaria Municipal do Urbanismo, o local passou a ser um ponto de aglomeração de jovens em carros com som alto antes da pandemia. De início, o estabelecimento foi interditado pela falta do documento e por perturbação do sossego público. Ele chegou a conseguir o documento, mas, com a pandemia, seguiu descumprindo as restrições, segundo Lazzarotto, e acabou tendo o alvará cassado. Foi notificado quatro vezes e multado em R$ 17 mil, valor máximo aplicado pela prefeitura. O caso foi encaminhado à Procuradoria-Geral do Município (PGM) que ajuizou ação contra o estabelecimento. A Justiça determinou pagamento de multa de R$ 500 por dia. A Vigilância Sanitária também notificou e multou o Sacolão. Na última segunda-feira, a fiscalização enviou novas informações à PGM sobre os recorrentes descumprimentos por parte do mercado, incluindo os dados da Vigilância.
– Administrativamente chegamos no limite. É um caso bem sério. É o maior caso de descumprimento desde o início da pandemia. A única medida que a prefeitura tem a adotar é a solicitação da interdição judicial – declarou Lazzarotto.
A reportagem contatou o homem que se apresentou na prefeitura como responsável pelo mercado, mas ele disse que não responde pelo estabelecimento. O filho dele também foi contatado e disse que retornaria a ligação, mas não o fez até o fechamento desta edição. O advogado que representa o estabelecimento também não retornou. À prefeitura, o suposto responsável pelo mercado disse estar sendo perseguido pela fiscalização.
Processo administrativo e judicial
A PGM informou que há um processo administrativo e um judicial em trâmite que tratam dos procedimentos relacionados a este estabelecimento. Informou que "foi deferida antecipação de tutela no judicial para interditar parcialmente o estabelecimento relativo aos horários excedentes ao decreto, porém o estabelecimento ainda não foi citado pelo judiciário." Na prática, significa que existe uma determinação da Justiça para que o Sacolão obedeça ao decreto estadual. O procurador-geral do município, Adriano Tacca, disse ainda que os documentos recebidos recentemente da fiscalização serão analisados e informados ao juízo da ação.
Brigada Militar vai investigar conduta de policiais
Entre as imagens capturadas no último sábado, dia 13, pelas câmeras do condomínio onde fica o Sacolão, está a de um policial militar fazendo compras no local após o término do horário permitido para o funcionamento. As cenas mostram uma caminhonete da corporação estacionando no outro lado da rua às 21h45min. O policial que está dirigindo o veículo desce, atravessa a avenida e chega no mercado. Por uma janela entreaberta, uma pessoa o atende. Minutos depois, às 21h47min, o PM recebe uma sacola pela janela e se afasta em direção à viatura.
Em outro vídeo, no domingo, outra viatura da Brigada Militar, desta vez, um carro, estaciona quase em frente ao Sacolão, às 20h50min. Um homem, apontado pelo condomínio como sendo supostamente um funcionário do estabelecimento, se aproxima, se agacha ao lado da janela do carona, conversa um pouco com o PM. Enquanto eles conversam, clientes são atendidos normalmente pela janela do Sacolão, sem que haja reação por parte dos PMs ao descumprimento do decreto estadual. Passados alguns minutos, a viatura deixa o lugar. Ambas as viaturas foram identificadas pelo comando do 12º Batalhão de Polícia Militar (12º BPM) como pertencendo ao batalhão.
A Brigada Militar tem apoiado as ações de fiscalização dos municípios desde o começo da pandemia, e, mais firmemente, a partir da suspensão noturna das atividades. Quando o governo estadual anunciou a medida de suspensão de atividades presenciais noturnas, a Secretaria de Segurança Pública do Estado divulgou nota dizendo que as forças de segurança atuariam na fiscalização e que estariam "em total mobilização para garantir a efetividade da medida preventiva, sempre iniciando pelo diálogo", mas não hesitando "em agir de forma mais firme e autuar aqueles que insistirem no descumprimento".
O comando do 12ºBPM informou que ordenou instauração de procedimento para investigar a conduta dos policiais que aparecem nos vídeos.
– Vai ser apurada a questão administrativa e a penal também. Temos que avaliar tudo, desde a chegada da viatura, o que houve, porque houve, que condutas foram tidas e porque condutas não foram adotadas – explica o major Márcio Leandro da Silva, subcomandante do 12º BPM.
O procedimento fica sob responsabilidade de um oficial ligado ao comando da unidade. Ele tem prazo de 40 dias para apresentar o resultado da investigação. Sobre a posição da BM diante da determinação do decreto estadual, o major disse que segue sendo a de apoio ao município na fiscalização:
– Nosso papel é fiscalizar e não permitir que as lojas estejam abertas. Tudo isso, também apoiando as ações da prefeitura municipal. Nós estamos atuando. Esse é um caso pontual para o qual está sendo instaurado procedimento para investigar.