O mercado da mobilidade elétrica é uma realidade. Esse é o veredicto de especialistas e profissionais que atuam no setor. Em Caxias do Sul, o panorama não é diferente. Empresas tradicionais, como Randon, Marcopolo e Agrale possuem projetos próprios de eletrificados. Ao mesmo tempo, surgem negócios novos e inovadores, como a Arrow Mobility e uma das primeiras vans elétricas nacionais, a Arrow One. No fim de 2023, outro empreendimento foi anunciado no município: a paulista Lecar iniciou a montagem do protótipo de mais um original brasileiro, o Lecar Model 459. Todos estes negócios, consequentemente, auxiliam a movimentar ainda mais a já bem desenvolvida indústria caxiense.
O vice-presidente de relações institucionais do Sindicato das Indústrias Metalúrgicas, Mecânicas e de Material Elétrico de Caxias (Simecs), Rubens Bisi, destaca que o município está desenvolvendo um hub (concentrador) de mobilidade elétrica. Além da produção de semirreboques, ônibus e vans, ainda há fabricação, por exemplo, de bicicletas e patinetes elétricos. Na avaliação da entidade, é raro encontrar um segmento forte em um único lugar, como ocorre em Caxias.
— Quando vem uma fábrica de automóveis, que usa equipamentos, mão de obra e sistemas produtivos modernos, nós vamos qualificar nossa região. Virão outros fornecedores. Ou seja, como foi feito lá em Gravataí. Gravataí veio a GM, mas ao redor da GM tem uma série de outras empresas de fornecedores. E com isso desenvolve toda o ecossistema da região — exemplifica Bisi.
Dentro deste ecossistema estão projetos consolidados, como a linha Hybrid R da Randon, com semirreboques e caminhões elétricos, que recentemente tiveram unidades vendidas a uma mineradora chilena. Ou com a Marcopolo, que segue a produção de ônibus elétricos, que recebeu até um investimento de R$ 50 milhões para produção na fábrica de São Mateus, no Espírito Santo. Outro exemplo bem-sucedido é a da parceria da Agrale e da Fábrica Nacional de Mobilidades (FNM), que ainda em 2021 produziram o primeiro caminhão elétrico do Brasil, o modelo 833.
Os projetos podem auxiliar não só o aumento de receita das empresas, mas também a qualificação. Além disso, por conta deste ecossistema caxiense, o vice-presidente diz que a entidade busca junto aos governos estadual e federal formas de incentivar novos investimentos.
Elétrico é realidade em Caxias do Sul
Uma equipe com experiência na área automotiva começou em Caxias do Sul um projeto único e que promete mudar um segmento que só cresce no país: o do varejo online. Em 2022, a Arrow Mobility lançou a van Arrow One, que é 100% elétrica e produzida na cidade. Além da sustentabilidade, o veículo inova ao acabar com "dores" encontradas no trabalho de entregadores, cada vez mais requisitados por conta das compras pela internet. O sócio-fundador e head (responsável) de engenharia, Jocelei André Salvador, lembra que 7,3 milhões de brasileiros tiveram que comprar da web pela primeira vez na pandemia, o que fortaleceu a ideia.
— Nós fomos para campo e entendemos todas as necessidades que o nosso veículo deveria suprir para não ser simplesmente um veículo elétrico. Então, ele é também um veículo elétrico e é uma ferramenta de eficiência elétrico e com design que chame atenção — descreve Salvador.
A eficiência já é comprovada em campo: são quase 300% a mais de entregas com a Arrow One. Grandes redes de varejo online adquiriram o veículo e viram a média diária de entregas subir. Em uma delas, a média era de cerca de 150 e saltou para 400. Por enquanto, os veículos rodam em São Paulo (SP).
Além da economia, tecnologia e conforto do elétrico, que é silencioso ao andar - como a reportagem pôde conferir -, a inovação está na organização do espaço interno da van.
Pensada para o entregador, há duas opções de organização interna que facilita o carregamento das mercadorias e o conceito walk-in-van - o motorista acessa o compartimento interno sem deixar o veículo. Como explicam Salvador, o designer industrial João Melo e o mentor de projetos Roberto Poloni, a Arrow One traz assim economia de tempo para colocar a carga, segurança ao motorista e agilidade na entrega, já que é possível organizar os pacotes nas estruturas - o que geralmente é difícil em outro veículo.
— Como missão da área de logística, é o uso racional e aproveitamento racional do tempo e do espaço — define Poloni.
DNA Caxiense
Seguindo a tradição caxiense, a Arrow One, com autonomia que pode chegar até 270 quilômetros, é montada em espaço próprio da Arrow Mobility. Inclusive, em 2024, o negócio mudou-se para uma nova sede, no bairro Cruzeiro, que proporciona um espaço maior para produção - o que era uma necessidade. Outra novidade é que as vans também começam a contar com a opção de carregamento rápido, para também atender uma demanda dos clientes.
Salvador comenta ainda que a rede de fornecedores que existe no município é bastante acionada. A exceção é para tecnologia do sistema elétrico, como a bateria, que ainda não existe uma produção nacional.
— Nós só importamos o que não é brasileiro, o que o Brasil ainda não tem tecnologia disponível para nos oferecer. O resto tudo é brasileiro e a maioria absoluta é Caxias do Sul — conta Salvador.
Dentro deste ecossistema, Poloni define que a empresa carrega o DNA de Caxias:
— É um DNA da cidade nesta área do transporte, seja de pessoas ou de carga. A cidade tem alguma coisa diferente aqui que puxa isso. A Arrow não faria sentido ser em outro lugar. Parece que era o lugar dela aquI. Não só porque as pessoas são daqui, mas que isso aconteceria aqui.
Design premiado
O que mostra o conceito da Arrow One ser mais do que um veículo elétrico foi uma recente premiação conquistada pela empresa. A equipe caxiense venceu o Prêmio Brasileiro de Design 2023 na categoria Design de Produto. Em 2024, a Arrow Mobility concorre ao prêmio internacional iF Design Award na mesma categoria.
— Se pensou em cada detalhe, tanto de funcionalidade, quanto de estética, fazendo um pacote completo — afirma Salvador.
O projeto da Lecar
Outro projeto, que está na fase de prototipagem, também começa a movimentar a indústria de Caxias. Trata-se do veículo projetado pela Lecar, com autonomia de 400 quilômetros por carga, com transporte para cinco passageiros e valor projetado em R$ 279 mil. O Lecar Model 459 levou seis meses para ser desenvolvido e a montagem do protótipo deve durar cerca de 40 dias. O cronograma divulgado pela Lecar é de que esta etapa termine em fevereiro, quando o veículo será enviado para Londres, na Inglaterra, para testes e homologação. Com ele aprovado, a intenção é ter uma produção com demanda de 300 veículos por mês. O início da fabricação em série é previsto para ocorrer em dezembro.
Financiado pelo empresário capixaba Flávio Figueiredo Assis, o projeto da Lecar é que a fabricação ocorra em Caxias, pela proximidade com fornecedores e parceiros. Para o protótipo, as empresas Polirim do Brasil, Moferko, Scan3D Engenharia Reversa, Braslux, Autotravi e DMG atuam no projeto. Além de buscar um espaço próprio no município, a Lecar poderá ainda expandir as parcerias na cidade.
No planejamento, o Lecar Model 459 terá 65% da produção nacional, sendo 35% das peças importadas da China - uma das referências na produção de veículos elétricos. Não há ainda um valor estimado de qual pode ser o giro da economia no município, mas a expectativa das empresas envolvidas é a melhor possível.
O ponto de partida
Com experiência de mais de 30 anos, o engenheiro Jander Correa foi o primeiro contato em Caxias procurado pelo projeto da Lecar. A ideia audaciosa chamou atenção e a Scan3D - Serviços de Engenharia Reversa, da qual Correa é diretor, assumiu o desenvolvimento dos desenhos em 3D do protótipo. A partir da consolidação deles é que as outras empresas parceiras podem produzir as peças. Os engenheiros iniciaram o trabalho pela estrutura externa do carro, passando pelo design e ajustes dimensionais.
— Tudo parte do desenho principal, que é o desenho do produto. Um carro eu acredito que tem 2,5 mil componentes. Todos esses componentes têm que ser fabricados e todos eles precisam de desenhos — observa Correa.
Como conta o diretor, o escritório está há quase 16 anos no mercado e atua em diversas áreas com clientes de todo o Brasil. Dentro da mobilidade, já atendeu projetos de peças com componentes para mecânica pesada, como ônibus e caminhão, e também na área agrícola. A partir desta experiência, Correa nota que o projeto da Lecar não deve apenas movimentar a indústria com mais serviço. O desenvolvimento do carro elétrico leva a exploração desta nova área, que prova ter se tornado realidade.
— A própria tecnologia do veículo elétrico, ele é uma novidade. Estamos estudando há um ano e trabalhando. Em setembro, eu estive na China. Fui para lá para conhecer e olhar esse mercado. Lá é comum ver carro elétrico. Tem mais carro elétrico do que carro à combustão nos grandes centros — descreve o engenheiro.
Fora o trabalho que é a base do projeto, as conexões de Correa auxiliaram na criação de uma rede caxiense para dar vida ao protótipo.
Desafio aceito
A chegada do projeto em Caxias também demonstrou uma resposta rápida da indústria local. Como lembra o diretor Alex Fabiano Moroni, da Moferko, entrar nele foi como aceitar um desafio. A empresa é responsável pela produção do chassi e estrutura metálica do carro. O trabalho tem o acompanhamento do setor de engenharia da Lecar. O primeiro esqueleto teve que ser feito em tempo recorde, a pedido da montadora. Em poucos dias, foi entregue.
Hoje, a Moferko já trabalha na quarta versão, fazendo os ajustes necessários para o esqueleto que será utilizado no protótipo.
— Um desafio que primeiro nos engrandece. Às vezes, tu não imagina a capacidade que tu tem porque tu faz tal tipo de produto, e aí vem alguém com algo tão grande e tu vê que é capaz — celebra Moroni.
A empresa prevê que até 20 novos empregos possam ser abertos a partir deste serviço. O diretor ainda analisa, por exemplo, investimentos em novas máquinas e solda robô. Além do crescimento dessa forma, Moroni vê um novo mercado abrindo-se para a empresa, que atua há 25 anos com corte, dobra e montagem de componentes, e desenvolvimento de chassis para veículos pesados, como ônibus, guindastes e rolo compactador.
— Sem falar que isso internamente agita e motiva os empregados, por eles estarem num projeto como esse — relata o diretor.
"Estamos fazendo história"
Há 15 anos no setor automotivo, a Ângulo Protótipos é mais uma que prevê futuras contratações para atender a parceria com a Lecar. O sócio-proprietário Neivaldo Roque Fabisiak, 47 anos, relata que o atual efetivo atende ao trabalho feito para o projeto do Lecar Model 459. A empresa é responsável por desenvolver peças para o protótipo do veículo, produzidas a partir de projetos 3D.
Com as peças, a montadora paulista também terá os moldes para quando iniciar a fabricação em série. A caxiense atende outros clientes no setor, como Marcopolo e a Santo Inácio, de Gramado.
— No primeiro momento, nós não precisamos contratar. Com o efetivo que tem aqui dentro, conseguimos atender a Lecar. Mas já estamos vendo que nas próximas etapas vamos precisar contratar, sim, porque sabemos que a demanda é grande. E o projeto é bem grande, né? São vários veículos — observa Fabisiak.
O projeto também empolga. Na avaliação do empresário, os caxienses, junto com a Lecar, estão dando um passo importante na indústria automotiva do país:
— Estamos fazendo história — destaca Fabisiak.
Experiência automotiva
Atuando da mesma forma que a Ângulo Protótipos no empreendimento da Lecar, a DMG Fibras e Moldes já até fez novas contratações por conta da demanda. A empresa, que está completando 30 anos no mercado, adiciona mais um importante projeto no currículo.
Além do trabalho com empresas locais, como Marcopolo, a DMG possui experiência no ramo de competições automotivas. Entre os projetos estão os carros Vettore, da Metalmoro - produzido para uma categoria da Endurance, e o MRX. Ambos projetos são liderados pela Metalmoro.
— Como a maioria das empresas de Caxias, começamos em casa. Era e ainda é uma empresa familiar. Começamos eu, meu pai (Deolindo), minha mãe (Diva) e meu irmão (Maiquel). A empresa sempre foi voltada para a área automotiva, também com peças automotivas. E desde então trabalhamos neste setor — conta o diretor Geison Vidor.
O supervisor de projetos Tiago José Velho também vê que a escolha da Lecar por Caxias e pela Serra é positiva. É mais um sinal de como o município possui um importante polo industrial:
— Caxias do Sul é dos maiores polos industriais. Então, a gente tem o know-how para fazer produtos desse calibre. A Serra é detentora desse conhecimento com grandes engenharias e com grande centro de design de produto. Temos certeza que a escolha de desenvolver esse projeto aqui é bastante assertiva.