O tradicional xis caxiense é mais do que um lanche, é quase uma entidade, um patrimônio cultural da cidade. É uma marca afetiva de Caxias, com empresas cinquentenárias, como é o caso da Hamburgueria Moreira. Se o setor de lanches fosse uma árvore genealógica, seria preciso referenciar que o tronco dos Moreira vem da raiz do BaitaKão. Porque o batismo de João Carlos Moreira, fundador do Lanches Moreira foi no trailer Baita Kão II, que ficava na Rua Os Dezoito do Forte, no centro da cidade. Isso lá no ano de 1973.
Naquele ano, o prefeito de Caxias era o Mário Bernardino Ramos e o presidente do Brasil, o general gaúcho Emílio Garrastazu Médici, tendo Delfim Neto no comando da economia. As manchetes internacionais daquele ano estampavam o embargo do petróleo no conflito árabe-israelense, que provocava uma grave crise global que se estendeu até 1974. Mas, para o João, que deixava de lado uma promissora carreira de protético, não interessava o cenário, tinha que dar certo esse negócio de fazer xis em um pequeno trailer.
O início de tudo, quem conta é Julia Maria Moreira, testemunha ocular de cada passo do marido, João, que morreu em 2009.
— Ele começou no BaitaKão, atendendo os carros, na unidade deles que ficava na Av. Júlio de Castilhos, em São Pelegrino. Nós já estávamos casados e, quando nasceu a minha filha mais velha, a Tati (Tatiana Moreira), o Moreira já tinha recebido o convite dos donos do BaitaKão, na época, pra ele alugar o trailer deles que ficava na Rua Os Dezoito do Forte. E naquela época só tinha o BaitaKão e o Zip Dog, ao lado do Hospital Pompéia.
Leandro Moreira, filho de João e Julia, é quem toca o negócio criado pelo pai, ao lado da esposa, a economista Aline Lazzarotto.
— Admiro ainda mais a história do meu pai, porque ele largou um ramo já consolidado, trabalhando como protético, e foi para um outro ramo no qual ele acreditou muito. Ele veio de um sistema de trailer pequeno, depois ampliou, colocando as mesinhas, então ele sempre deu esses passos, melhorando o negócio. Ele sempre teve tino de ampliar o negócio e oferecer um serviço melhor para o cliente. Então, o que temos hoje é uma consequência dos passos que meu pai deu — reconhece Leandro.
Conforme levantamento do Sindicato Empresarial de Gastronomia e Hotelaria da Região Uva e Vinho (Segh), Caxias conta atualmente com quase 2 mil negócios gastronômicos, entre casas de lanches, restaurantes, cafés e similares. Dessas, 168 revelam que possuem foco em hambúrguer ou no xis.
Uma tradição mantida no negócio
Se hoje a Hamburgueria Moreira ainda mantém a tradição de ser um negócio familiar, naqueles idos de 1970, a participação dos membros da família era ainda mais efetiva.
— Ainda na época dos trailers, quem já trabalhava com o meu pai eram os meus tios, o Jarico (Jari da Rocha, que tem hamburgueria em Carazinho) e o Jaime (Jaime da Rocha, proprietário de hamburgueria em Caxias). E por muitos anos ele (o Jarico) foi proprietário do Belvedere Parque Lanches, que ficava na Rua Os Dezoito do Forte, nas escadarias que dão acesso ao Parque dos Macaquinhos — conta Leandro.
Julia, esposa de João, também trabalhava (e muito), mas não no trailer. Ela conta que toda a preparação, seja dos hambúrgueres (ainda hoje temperados da mesma forma), da salada, e mesmo a maionese verde, tudo era feito em casa para depois ser levado ao trailer.
— Esses trailers não tinham espaço, eram pequenos. Então, minha mãe não trabalhava diretamente no trailer, mas em casa. Ela e minha avó e meu avô também — recorda Leandro.
— Não tinha água encanada no trailer. Então, eu tinha de levar água em garrafões de vidro — conta Julia.
— Ainda no tempo da Dezoito do Forte, na Coronel Flores e até mesmo no ponto da Moreira César, a gente ainda preparava a maioria das coisas em casa — complementa Leandro.
— Olha, até de bicicleta foi levada muita maionese. A gente morava no bairro Medianeira, e levava até esse ponto na Dezoito do Forte. Falando isso hoje a gente nem acredita (risos) — brinca Julia.
— Por isso que falo e insisto, o meu pai acreditou muito nesse negócio em que estava se metendo, ele foi muito visionário para investir em algo sem saber se ia dar certo. Ele largou um negócio certo, de protético para encarar um novo desafio e com a família aumentando — justifica Leandro, que, além de Tatiana, sua irmã mais velha, tem ainda o Marcelo, como o irmão caçula, ambos fora do negócio.
Influência norte-americana
Enquanto Leandro contava sobre a trajetória do pai em um setor que não para de expandir, ele revelou uma teoria, na qual acredita, que pode explicar o mistério do porquê o xis ser prensado em praticamente todas as cidades do Estado, menos em Caxias do Sul.
— É inexplicável que saindo de Caxias, mesmo em Porto Alegre, que é capital e poderia inspirar o nosso xis, lá o lanche é prensado, e praticamente só a gente faz o xis sem ser prensado — observa Leandro.
— Então, qual é a tua teoria?
— A teoria, não sei se faz sentido para ti, mas para mim faz. Olha só o caso do Zip Dog que também fazia xis naquela época que meu pai começou. O dono do Zip Dog era norte-americano, e pensa isso no final dos anos 1960 para 1970. Eu acredito que o nosso xis é muito mais parecido ao hambúrguer americano, claro, com a nossa influência local, do que um xis que é feito aqui na região. Deve ter tido essa influência americana para que nosso xis não seja prensado.
Para reforçar o argumento, Leandro revela outra característica dessa influência.
— Sabe outro argumento que confirma a influência norte-americana no nosso xis? Sabe como se chamava o Xis Galinha naquela época? Xis Eggs Chicken. Isso na década de 1970, em Caxias, pensa isso! E também já tinha o Cheesburguer. E o Xis Filé, naquela época se chamava Xis Americano. Por isso que eu digo que é bem provável que tenha a influência desse norte-americano, que era dono do Zip Dog, no xis de Caxias, para que ele não seja prensado.
Clássica fotografia da neve
Quem frequenta a Hamburgueria Moreira, atualmente na Rua Bento Gonçalves, certamente já reparou na parede à esquerda, de quem entra no restaurante, os registros de momentos importantes da história do João. A fotografia clássica é do primeiro trailer em que Moreira iniciou neste ramo. O clique imortalizou uma cena típica da região Sul, em uma noite invernal, tão fria que espalhou neve pelo entorno do trailer.
Curiosamente, a mesma foto, em outro ângulo, está exposta logo acima da porta de entrada da Hamburgueria Jaime Rocha, que é irmão de Julia, e consequentemente, tio de Leandro.
— Essa foto se tornou clássica para a nossa região. Porque tem esse trailer com neve. Meu tio Jarico, que trabalhou muito mais tempo com o meu pai, brinca sempre com a gente dizendo: “Bah, o Jaime foi ajudar lá um mês e está na foto. E eu que trabalhava lá há um tempo, não saí na foto” — revela Leandro, entrando na brincadeira.
— É que o Jarico ia atender os carros, levando os lanches para os clientes e não devia estar ali para a foto. Depois de um tempo, ele foi chapeiro. O Moreira sempre dizia que o Jarico era um dos melhores chapeiros. Ele e a minha cunhada também trabalharam com o Moreira — complementa Julia.
Jarico, que se aventurou tanto no mundo do xis quanto das quadras de futsal, lembra bem desse período:
— Esse dia da foto com neve eu levei azar, porque eu acho que não estava ali (risos).
Jarico diz que começou neste ramo e virou empreendedor incentivado pelo cunhado, o João Moreira.
— Com o João, aprendi a questão da liderança, como se dedicar sempre, ele estava sempre ajudando as pessoas e sempre teve um bom relacionamento com os funcionários, tratando a todos como sendo da sua família. Foi incentivado por ele que eu virei empreendedor. Na época, quando abri o Belvedere, em 1986, o João me deu o trailer de presente para eu começar. Ele foi muito importante na minha trajetória — reconhece Jarico.
O aprendiz catarinense
Entre tantas histórias que revelam como o João Moreira estava sempre disposto a ajudar as pessoas, como revelou o Jarico, que ganhou seu primeiro trailer de presente do Moreira, Leandro e a mãe, Julia, lembraram da história do aprendiz catarinense.
— Tem uma história que diz muito sobre quem era o meu pai. Veio uma vez pra cá um cara de Santa Catarina... — recorda Leandro.
— Eu ia falar justamente falar dele... — interrompe Julia.
— Conta a história, então, mãe.
— Esse catarinense era o seu Pedro, morava em Itajaí, em Santa Catarina. E alguém que ele conhecia por lá também conhecia o Moreira. O Pedro queria colocar um negócio de lanches, para ver se mudava de vida. Aí, ele ligou para o Moreira para saber se ele ensinava a fazer a maionese e o hambúrguer. Então o Moreira concordou. O Pedro veio a Caxias de carona, porque não tinha condições de pagar a passagem de ônibus. Esse cara se hospedou lá em casa... — narra Julia.
— Pensa na nossa realidade hoje, como é que meu pai hospedou alguém lá em casa, sem saber quem era, que conheceu só de falar por telefone (risos) — brinca Leandro.
— O Moreira colocou o Pedro no quarto que os guris usavam para a banda deles (Leandro e o irmão Marcelo haviam fundado a Burning in Hell).O Pedro ficou vários dias lá em casa. O Moreira ensinou tudo para ele — explica Julia.
— E meu pai ainda pagou a passagem de volta dele. Quem hoje faz um negócio desses? Porque meu pai nem foi atrás para saber quem era esse cara, se era confiável — pondera Leandro.
— E, no final das contas, ele abriu a lancheria?
— O Pedro montou um negócio, mas não deu certo e mudou de ramo. Mas ele sempre dizia para nós, que assim que ele estivesse estabilizado, melhor de vida, ele queria nos receber. Então, quando ele ajeitou a casa dele para nos receber, fomos visitar ele — conta Julia.
Empatia e solidariedade
Essa atitude solidária de João Moreira em ajudar as pessoas, que permeou toda a entrevista para essa reportagem, tem origem em um capítulo da vida de João Moreira, que poucas pessoas têm conhecimento.
— Outra coisa que era muito natural para o meu pai é que ele ajudava quem ele podia. Vinham crianças, às vezes até moradores de rua, para pedir um lanche e meu pai sempre dava algo para eles comerem. Meu pai ajudava Deus e o mundo — conta Leandro.
— É que muita gente não sabe, mas o Moreira foi um guri que praticamente foi criado na rua — revela Julia.
— O Moreira que temos como sobrenome é da minha avó. Porque meu pai não foi registrado pelo pai dele. Então, ele se virou como pôde, carregando mala na rodoviária, engraxando sapato, inclusive, ele pegava caco de vidro em banhado para vender, então, por isso que ele ajudava tanto as pessoas. Meu pai tinha tudo para ter ido para o lado ruim da vida, porque não deve ter faltado oportunidades para isso — reconhece Leandro.
— Acontecia muito de a gente levar pessoas para casa. Tinha dois meninos que vinham no trailer da Pinheiro, no final da noite, sempre para pedir um lanche. Então o Moreira fazia um pão com ovo, dava a eles e depois levávamos os guris para casa — recorda Julia.
— Eu sempre falo, ele ajudou muita gente — diz Leandro.
— Numa noite, estávamos fechando o trailer, na Pinheiro. E vimos uma mulher com uma criança no colo. Nunca me esqueço. Saímos para levar a mulher com um bebê no colo, que havia saído do plantão. Fomos até o Reolon para levar ela e o filho para casa, porque o Moreira ficou com o coração apertado de ver aquela cena — lembra Julia.
Enfrentando as crises do Brasil
Quando o pai do Leandro começou no mundo empresarial, ele enfrentou diversas crises, tendo como calcanhar de Aquiles, nos anos 1980, as constantes elevações de preços, a hiperinflação e as trocas de moedas. Em 1973, quando atendia no trailer, Moreira vendia os lanches em cruzeiros. Anos depois, em fevereiro de 1987, viria o cruzado e com ele, sucessivos planos numa tentativa de controlar as finanças do país.
Em 1990, por exemplo, o Moreira empreendedor teve de enfrentar a crise gerada pelo Plano Collor, que bloqueou parte das aplicações em Poupança dos brasileiros, trouxe de volta o cruzeiro, implementou o câmbio flutuante, entre outras medidas, que resultaram em uma recessão profunda com queda de 4,3% do PIB. Em 1993, a moeda perdeu três zeros e foi rebatizada para cruzeiro real.
Há 29 anos, em 1º de julho de 1994, entrava em cena o real. No mesmo ano em que a seleção vencia a Copa do Mundo, nos Estados Unidos, Fernando Henrique Cardoso, ministro da Fazenda na implantação do Plano Real, é eleito presidente.
Leandro recorda de parte dessa revolução econômica, mas ele mesmo, como empreendedor, estando à frente do negócio há 15 anos, já acumula diversas crises enfrentadas.
Desde que Leandro assumiu a empresa, encarou as crises de 2014-2017, que produziram uma redução da capacidade de crescimento da economia brasileira e risco de insolvência das finanças públicas. Logo a seguir, veio a greve dos caminhoneiros, que parou o Brasil por 10 dias. E a cada crise, o esforço de permanecer de pé.
— Depois veio ainda a pandemia. Tudo que idealizamos aqui, com a nova decoração, para proporcionar uma experiência ao cliente, para ele comer um hambúrguer numa espécie de diner americano, não podia. Porque estávamos na pandemia. Com o fim da pandemia, quando achamos que ia dar uma levantada, veio a pior de todas as nossas crises. Não foi mundial, foi local: a crise da carne de cavalo. Então assim, uma coisa é todo mundo passar pela mesma crise. Outra coisa, é um só setor passar pela crise, em uma só cidade — avalia Leandro.
Desafios de ontem e também do futuro
Durante a entrevista com Julia e Leandro, a Aline Lazzarotto Camargo, sócia e esposa de Leandro, observava o bate-papo enquanto cuidava de planilhas e mais planilhas. Contudo, quando perguntada quais são os maiores desafios que ela vê no setor de alimentos em Caxias do Sul, reforçou o que dezenas de especialistas têm defendido e debatido há décadas: a dependência de uma única matriz econômica, a indústria.
— Caxias ser totalmente dependente da indústria é um fator que atrapalha bastante. Porque os fatores críticos de sucesso são as pessoas e os processos. Então, antes da inflação, de verificar os custos e o aumento de preços, a gente tem um problema grave que é a falta de mão de obra qualificada. Porque a grande maioria das pessoas quer trabalhar na indústria, seja por causa do horário ou até de outros benefícios que as empresas grandes oferecem e que o comércio, por vezes, não consegue proporcionar. Então esse é o nosso grande desafio.
E complementa:
— Por mais que a gente tente investir em treinamentos, em processos, desde quando o funcionário entra, muitas vezes, ele não é a pessoa certa, não é o perfil ou não se enquadra. Então para manter o padrão é difícil quando não se tem a mão de obra qualificada.
Essa dificuldade na contratação, relatada por Aline, é confirmada por Leandro com outro exemplo. Há cerca de 15 dias, ele teve uma reunião com um diretor do aplicativo de entregas de comidas iFood, que estava ao lado de uma profissional que trabalha em Caxias e cuida diretamente de uma carteira de 50 clientes, que eles chamam de “super-restaurantes da cidade”. E a Hamburgueria Moreira está nessa lista.
— Para trabalhar com a iFood, tem dois tipos de contrato, ou tem de usar os motoboys deles ou tu tem que contratar os teus motoboys. Cerca de 90% dos restaurantes usam os motoboys do iFood. Mas, em Caxias, num dia frio como nessa época, chovendo, por mais que dê mais dinheiro para o motoboy, porque ele vai fazer mais entregas, tem todo o risco de acidentes, do cara ficar gripado, e não é todo entregador que está disposto de encarar o tempo ruim e esses riscos todos — explica Leandro.
— E também tem o fato de que o motoboy, que hoje faz entregas, está tentando uma vaga na indústria, e, se for contratado, é claro que ele vai deixar de ser entregador — complementa Aline.
Esse contexto, segundo explica Leandro, é apontado pelo diretor do iFood como um problema local, porque na grande maioria das cidades em que atuam eles não enfrentam essa falta dessa mão de obra.
— Um motoboy comigo ganha R$ 10, que é o valor da entrega mínima, por exemplo. Mas, trabalhando para o iFood, o mesmo motoboy, além de não receber na hora, muitas vezes recebe praticamente a metade do que eu pagaria para ele. Então é muita coisa que dificulta para os caras. É um problema bem local. Na grande maioria das cidades, eles nos disseram que não enfrentam um problema como esse. Tudo por causa da demanda grande da indústria — pondera Leandro.
Se lá em 1973, além das crises, João teve de encarar os desafios de um novo ramo, fazendo xis em um pequeno trailer, agora, em 2023, há outros desafios no caminho de Leandro e Aline. Além das crises que vêm e vão como marés. Para eles, a alternativa está na diversificação da matriz econômica.
— Aqui ainda não implantaram a cultura do turismo. A saída é o turismo — defende Aline.