A Festa da Uva de 1950 e o incêndio que atingiu o Palácio de Festas, junto à antiga Cooperativa Madeireira Caxiense, foram assuntos recordados diversas vezes neste espaço. Mas hoje destacamos uma abordagem “diferente” que circulou nos jornais de 70 anos atrás, decorridos alguns dias daquele incidente.
Dois textos, ambos escritos sob pseudônimo, demonizaram a apresentação da bailarina carioca Eros Volúsia na madrugada de 17 de março de 1950, atribuindo a ela o “castigo” da boate destruída pelo fogo – exatamente após sua performance.
A ira em relação à presença de uma dançarina “exótica e que usava tanga” num evento “tradicional e de respeito à história de Caxias”, logicamente, expunha a faceta conservadora e extremamente religiosa de boa parte da cidade naqueles tempos – e que não mudou muito –, conforme vemos no texto original abaixo, publicado no Pioneiro em 1º de abril de 1950.
Detalhe: o autor, obviamente, não se identificou, assinando apenas como “Zé Pingado”. Primeiramente, vociferou contra o palco das apresentações artísticas. Depois, desmereceu a artista, que, nove anos antes, em 1941, ganhava a capa da prestigiada revista americana Life, devido ao vanguardismo de sua dança.
“Esta não é uma história de fadas para crianças. Mas pode, muito bem, começar assim. Era uma vez uma exposição comemorativa do trabalho árduo, rude e honesto de 75 anos de colonização duma raça forte, heróica, empreendedora, cheia de fé. Acontece que no recinto dessa exposição havia um Palácio de Festas, que explorava os visitantes, nas suas bolsas recheadas e na sua moral, cobrando preços exorbitantes e exibindo espetáculos dignos do mais sórdido cabaré da Lapa. Mas, como em todas as histórias infantis da Carochinha, esta história, que é de fadas, tem seu desfecho com a punição do mal – o Palácio de Festas não mais existe, estando reduzido a um montão de escombros, depois de lambido com vontade por um incêndio... E, só assim, os gananciosos exploradores e os levianos frequentadores dessa espelunca grã-fina voltaram a respeitar os dias de penitência na Quaresma”.
O texto seguia com insinuações e ofensas à família da bailarina:
“E já que falei aqui do incêndio que liquidou com a boate da Festa da Uva, não fica nada mal dizer alguma coisa a respeito da sacolejante Eros Volúsia, colega digna de Luz del Fuego e outras tantas desmilinguidas dançarinas que divulgam sua arte por este Brasil afora. O pedigree da srta. Volúsia, autêntica figura sartreana, que anda por aí impingindo como exímia atriz coreográfica, não é lá muito extenso, nem muito brilhante. Sua árvore genealógica, que eu conheço muito bem, se perde, para identificação, do lar paterno. Do lado materno, tudo é simples e tremendamente fácil de abordagem. Sua mãe, Gilka Machado, autora dos mais excitantes poemas eróticos que se conhece na Língua Portuguesa; sua avó, Teresa Costa, rádio-atriz velha, mas não aposentada, que passeia pelos corredores das emissoras cariocas resmungando palavrões e soletrando papéis de magros cachês”.
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Inovação e incompreensão
Incorporando elementos das culturas negra e indígena à dança clássica, Eros Volúsia sempre buscou uma identidade própria para o bailado brasileiro – consta que foi a primeira bailarina a sambar de sapatilhas e também a dançar descalça, no Teatro Municipal do Rio de Janeiro, em 1929.
Toda essa postura inovadora e liberdade corporal, que a levaram a Hollywood nos anos 1940, nem sempre eram bem aceitas, como ficou explícito no texto anônimo publicado no Pioneiro de 1950:
“Durante o incêndio, esse pobre Zé Pingado teve a oportunidade de ouvir os mais desencontrados comentários sobre o sinistro. Alguns, bem poucos na verdade, lamentavam o ocorrido. Outros, bem-humorados, glosavam o fato com verve e irreverência. Assim, quando um cidadão comentava que os artistas participantes do show perderam tudo, roupas e instrumentos, alguém ao seu lado falou, jocosamente:
- Bem, quem menos perdeu foi a Eros Volúsia.
- Como assim?
- Pois então, ela não dançava só de tanga?”
Nascida em 1914, Eros Volúsia faleceu em 2004, aos 89 anos. Até hoje, não foram localizadas imagens de sua meteórica passagem por Caxias.
"Espetáculos pouco dignos"
A parte final do texto também evocava uma espécie de punição à boate e saía em defesa “da moral e dos bons costumes”:
“É crença geral, em Caxias do Sul, que o incêndio que devorou o Palácio de Festas nada mais foi do que um castigo divino, já que naquele local se dançava diariamente e se apresentavam, ainda, espetáculos pouco dignos em plena Quaresma. Essa é a vox populi, e ela dificilmente erra. Outros espalham que foi obra dos padres, e os que assim se expressam olham, significativamente, lá para as bandas do bairro São Pelegrino, como a sugerir que o autor de tudo foi o meu dinâmico amigo Padre Giordani. Assim pensam e espalham pela cidade os incompetentes e negativistas que invejam a obra daquele grande sacerdote. Muita gente lamenta os prejuízos financeiros, sem lembrar que o Palácio de Festas se achava segurado por elevada importância. Muito maior que o prejuízo financeiro foi o de muita gente boa, que lá deixou o restinho de vergonha que ainda possuía...”
Confira o texto original abaixo.
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