Neste 2020 em que são recordados os 75 anos do final da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), a Serra gaúcha despediu-se de um de seus últimos combatentes. Anastácio Agostinho De Déa faleceu no último domingo, dia 31, aos 97 anos, vítima de um infarto, em Nova Roma do Sul, onde morava. As últimas homenagens ocorrem neste sábado, às 18h, durante uma missa de sétimo dia conduzida pelo padre Gilmar Paulo Marquesini, de Bento Gonçalves, com transmissão pelo Facebook do religioso. No domingo, às 9h, a celebração ocorre pelo Facebook da Paróquia São Pedro e São Paulo da Matriz de Nova Roma do Sul, com a condução do padre Gilberto Lazzarotto.
Filho de Ângela Paiosa e João De Déa, seu Anastácio nasceu em 11 de outubro de 1922, na Capela de São Valentim, em Nova Roma do Sul. Conforme relato dos netos Gustavo De Déa e Daniela De Déa Andreazza, seu Anastácio começou a trabalhar cedo, aos 12 anos, como aprendiz em carpintaria, construindo moinhos movidos à água. Posteriormente, seguiu como pedreiro, dando forma a casas, igrejas e colégios, além de móveis e esquadrias.
– Na pequena capela onde nasceu, ainda novo doou um terreno e construiu uma igrejinha, fez os bancos, portas e janelas. Foi fabriqueiro por mais de 15 anos. Sempre participou das comemorações festivas do interior com trabalho e doações. Gostava do encontro com os amigos para jogos de bochas, cartas e conversas – conta Daniela.
Brasil na guerra
O alistamento militar coincidiu com o período da guerra, e, conforme a neta, de lá mesmo do quartel foi escalado para integrar a Força Expedicionária Brasileira na Itália – confira algumas lembranças abaixo. Já o casamento com dona Amélia Vanzetto deu-se em 17 de maio de 1947, logo após o retorno do combate na Itália, nascendo dessa união nada menos do que 16 filhos, três deles falecidos: Terezinha, Avelino, João, Pedro, Darcí, Zélia, Ivo, Maria de Lurdes (que morava com ele), Olga, Antoninho, Ilda, Odete, Oscar, Joanete, Agostinho e José.
Filha de Lurdes, Daniela conviveu por 39 anos com o avô:
– Marcaram-me os ensinamentos sobre honestidade, seus trabalhos e sua habilidade em carpintaria, seus cuidados com a terra, sua compaixão com os que têm fome. Ele media o valor de um homem pelo tanto que trabalhava, a fé e a honestidade com a esposa e a família – relata Daniela.
Agricultura e restauração
Atuante como professora e restauradora de obras sacras, Daniela De Déa Andreazza destaca o preciosismo do avô:
– Auxiliava-me nos restauros enfatizando alguns aspectos: qualidade do trabalho, pontualidade, reconhecimento artístico e o orgulho em trabalhar e me ajudar em algo ligado à religiosidade, pois sempre foi muito devoto –completa.
Outra paixão era a natureza, as árvores frutíferas e agricultura, em especial o cultivo de milho. Foi para “plantar mais” que decidiu cortar as laranjeiras junto ao pomar de casa, na localidade de Nova Treviso, interior de Nova Roma do Sul. E foi sob uma delas que veio a falecer no último domingo.
Além dos filhos, seu Anastácio, que era viúvo desde 1984, deixou 53 netos e 31 bisnetos. As cerimônias fúnebres contaram com a presença do 3º GAAAé, que prestou uma homenagem durante a saída do caixão da igreja, salva de tiros e toque de silêncio.
– Era o sonho dele que fosse assim, e graças a Deus foi feito – pontua Daniela.
O nome de Anastácio De Déa e de outros 12 pracinhas consta em uma placa fixada na Praça Garibaldi, em Antônio Prado, município ao qual Nova Roma do Sul pertencia até 1987.
Relatos de guerra
Conforme a neta Daniela De Déa Andreazza, o avô tinha as memórias de guerra bastante vivas:
— Falava muito sobre a fome do povo Italiano, quando as crianças comiam as sobras de um dia ou dois, já fermentada dentro de tonéis. As moças eram oferecidas pelos próprios pais aos soldados para intimidade ou para fazer fotografias nuas, para conseguir algum dinheiro. Falou do dia que viu uma fila com mais de 15 soldados aguardando a “vez” da intimidade (forçada ou não, ele não sabe) com uma jovem que chorava e sangrava, e que até o convidaram para ficar na fila — conta Daniela.
Confira abaixo outros relatos da neta a partir das conversas com o avô:
“Sempre falou da amizade com duas meninas de 3 e 5 anos chamadas Marta e Juliana, filhas de uma lavadeira, onde suas fardas eram levadas. Tinha o sonho de trazer as meninas para o Brasil e sempre vendia suas carteiras de cigarro para comprar chocolates às pequenas amigas, cujo seu pai não voltava para casa há 5 anos, pois fora feito refém na Rússia. Havia convidado a mãe e as meninas para voltarem ao Brasil com ele, mas a jovem queria esperar o retorno do marido, que, na opinião dele, jamais voltaria”.
“Falou sobre uma injeção feita diariamente para “criar coragem” e sobre bombas que eram lançadas com gás - ele e os soldados se defendiam dentro de um saco plástico grande, preso debaixo dos pés por um tempo. Falou sobre o trabalho como barbeiro e cozinheiro de soldados e oficiais, sobre.o medo de encontrar minas terrestres e sobre como conseguiu esconder o dinheiro recebido no RJ após a volta, em um bolso falso costurado por dentro da calça para que não o roubassem”.
“Seu orgulho foi conhecer pessoalmente o Papa Pio XII, do qual recebeu a bênção para a família De Déa. Gostou muito das visitas ao Vaticano e outros pontos turísticos de Roma durante uma semana com tudo pago”.
Um relato emocionante
Uma das últimas entrevistas de seu Anastácio foi concedida a jornalista Stela Pastore, que deixou um emocionante relato em seu Facebook:
Quando morre um idoso sábio, de vivências intensas, sempre penso que desaparece uma biblioteca. Tem alguns que a biblioteca é gigante. É o caso do seu Anastácio De Déa, que partiu hoje (31), na comunidade de Nova Treviso, em Nova Roma do Sul. Tive a honra e o prazer de conhecê-lo há dois anos, quando fui a Antônio Prado e soube pelos parentes que um combatente da Segunda Guerra vivia em Nova Treviso. Então, fui procurá-lo. E tive a graça, a sorte de encontrá-lo em casa num domingo à tarde, após a sesta. Fui muito bem recebida na casa por um dos 16 filhos que teve com sua esposa, já falecida. E com a neta, a restauradora e professora Daniela De Déa Andreazza, que junto com sua mãe me ciceroneou e favoreceu uma longa e privilegiada conversa inesquecível.
Pra começar, perguntou quem eu era. E pronto! Sabia muito sobre muita gente, conhecia meus avós (que eu não conheci), era grande amigo dos meus pais, que faleceram em 2008. Falava com detalhes de como era minha mãe, do meu pai e meus tios, vizinhos, e de personagens muito marcantes da nossa comunidade, caso de Vitório Tessaro. Artista da vida. Agricultor, marceneiro, grande construtor e nem ouso imaginar todos os ofícios e saberes desse homem. Ele mesmo me contou que havia construído a escola rural onde estudei até a quarta série, construiu a pequena igreja da minha comunidade de Nossa Senhora de Monte Bérico (que doou seu trabalho), construiu a casa dos meus tios, também do vizinho, seu Dionísio Ravanello... E certamente fez outras centenas, milhares de coisas na sua vida de quase 100 anos de preciosa memória.
Contou da participação na Segunda Guerra Mundial, quando integrou a Força Expedicionária Brasileira na Itália. Lembrava com detalhes a dureza dos dias, da fome. Que compartilhava a comida, sempre que podia, com duas irmãs famintas, de uns seis ou sete anos. Uma se chamava Juliana. E ele disse que gostaria muito de saber se elas estavam bem. Descrevia com seus olhos intensos a tristeza daquele período. “Escapei da morte. Não matei ninguém, graças a Deus”!
Lembrava todos os nomes dos 11 colegas (Marino Borsoi, Valmorbida, Boeira, Bellé, Fantin, Dedeá, Angelin Cerchilero, Miro Facio, capitão Terribile, Caixan e Fiameti) que partiram juntos para a Guerra, assim, contando nos dedos, sem esquecer nenhum. Só ele estava vivo. Há poucos dias vi uma foto dele e a neta ao sol. Daniela comentou que estariam esperando para mais uma série de diálogos impregnados de vida. Nos fundos da casa, uma horta linda, com o milho plantado por ele em fileiras milimétricas. Dizia que assim produzia mais. Passaria uma vida ouvindo suas histórias. Gratidão por conhecer mais um desses seres absolutamente únicos e de uma sabedoria encantadora. Não acho palavras para alguém assim.
No vídeo abaixo confira um trecho da conversa com seu Anastácio ocorrida em maio de 2018.