As duas experiências sem similaridade com a versão digital, para mim, são assistir a um show ao vivo ou a um jogo de futebol no estádio. Sempre que estou em um deles lembro que não existe sofá confortável, ausência de filas, estacionamento fácil ou bebida gelada à disposição que compensem a catarse. Dá até para esquecer de qualquer perrengue inicial depois de poder compartilhar, com um monte de gente, um sentimento comum, de alegria ou frustração.
Esses acontecimentos acabam virando parte das melhores memórias da vida. Sejam os gols que eu e meu pai não vimos porque ele me levou fazer xixi e, depois, comprar comida —ainda era criança, mas a gente ri disso já faz umas décadas —, meu fascínio pela torcida do Boca Juniors na Bombonera, me fazendo levar uns 20 minutos para prestar atenção no gramado de um jogo da Libertadores ou presenciar Cristiano Ronaldo, quando ainda atuava no Real Madrid, fazendo pose e olhando para o telão a cada cobrança de faltas, em um jogo da Champions League. De sair pela porta lateral do estádio com amigos, com escolta policial, depois de um momento tenso em uma partida aleatória e presenciar a fúria da torcida.
Uma das minhas percepções favoritas em um estádio é prestar atenção aos sotaques e aos palavrões. Afinal, os xingamentos dizem tanto sobre a cultura, né? Tempos atrás, conheci um pesquisador italiano que se ocupava dos parolacce (os palavrões) e ao questionar os porquês da escolha dele pelo assunto, respondeu: “eles têm uma força inigualável para exprimir a emoção rompendo um tabu (aquilo que é proibido de dizer), é liberada uma energia reprimida, que serve a abafar momentos de raiva, medo, surpresa...”. Sim, palavrões são polissêmicos. Os proferidos durante uma partida de futebol expressam emoções diferentes das de um concerto.
Não esqueço o primeiro show do Luiz Marenco que vi, a trabalho, sem conhecer nenhuma música dele. A vibração do público quando ele entrou no palco, mostrou que eu estava diante de uma espécie de Bono dos pampas – e acabei virando fã. Chorei durante 15 minutos no show do Chico Buarque, o favorito da minha avó materna, por conta de toda carga familiar contida naquele palco. Vi Zeca Baleiro cantar com Gal Costa, Zeca Pagodinho com Maria Bethânia, Roberta Sá com Alcione, Teresa Cristina com Caetano e Maria Rita com Bocelli. Vi o vocalista da Cachorro Grande na fila gigantesca para ver Rolling Stones no Monumental de Nuñes, vi um monte de gente comovida no show do Paul McCartney. E no de Oswaldo Montenegro, talentoso e muito falante. Fiquei superfrustrada porque João Bosco deixou a plateia cantar Papel Machê e não ouvi a canção na voz dele. Ao vivo, descobri porque Roberto Carlos é rei e faz senhoras se tapearem pelas rosas que distribui. Assisti ao show de Milionário & José Rico do palco, antes de falar separadamente com cada um deles, que não compartilhavam o camarim. Fiz um dueto muito aleatório com Toni Garrido na canção Coleção — e eu nem sei cantar! Dancei com Omara Portuondo e não fiz feio! Queria morar no último show do Thiaguinho a que assisti e fiquei impressionada com a versatilidade musical do Emicida. Experimentei uma espécie de viagem no tempo nas duas vezes que ouvi Bon Jovi, meu favorito na adolescência.
E, ao lembrar desses acontecimentos, percebo que escrevi esse texto sorrindo, revivendo um monte de momentos felizes em poucos segundos. Reafirmo minha convicção de não trocar conforto por esse tipo de perrengue que, ressignificados, viram instantes de plenitude: futebol no estádio e show ao vivo são espaços onde a vida se eterniza.