Deparei-me novamente, há poucos dias, com um texto clássico do escritor norte-americano David Foster Wallace chamado Isto é água. Trata-se da transcrição do discurso que fez enquanto paraninfo para formandos do Kenyon College, em 2005. Incensado e controverso, comparado até a James Joyce por dar voz aos anseios de uma geração, Wallace deixou Graça Infinita como obra-prima e outros escritos que conquistaram uma legião de fãs. Nesse, que cito aqui, traz algumas passagens que gosto muito e acredito fazerem muito sentido.
O autor faz uma ode à desacomodação e à empatia. Já pelo início, dá para ver que se trata de um chamado instigante:
“Dois peixinhos estão nadando juntos e cruzam com um peixe mais velho, nadando em sentido contrário. Ele os cumprimenta e diz:
— Bom dia, meninos. Como está a água?
Os dois peixinhos nadam mais um pouco, até que um deles olha para o outro e pergunta:
— Água? Que diabo é isso?
(...) O ponto central da história dos peixes é que a realidade mais óbvia, ubíqua e vital costuma ser a mais difícil de ser reconhecida. Enunciada dessa forma, a frase soa como uma platitude — mas é fato que, nas trincheiras do dia-a-dia da existência adulta, lugares comuns banais podem adquirir uma importância de vida ou morte.”
Ou seja, tal como ratinhos de laboratório, vamos apenas fazendo a roda girar, sem pensar no processo. Fazemos atividades repetidamente — acordar, trabalhar, voltar para casa e, assim, sucessivamente, por anos —, sem pensar nas implicações que isso traz. Nossas interações também costumam ser baseadas em duas premissas: desinteresse pela vida alheia ou incômodo pelo que provoca em nós. Wallace reforça que costumamos nos sentir o centro do universo e, ao nos entediarmos com uma pessoa na frente da fila do supermercado, por exemplo, dificilmente temos empatia para pensar que ela pode estar passando por um momento bem mais difícil do que o nosso, que estamos apenas entediados e loucos para sair de lá.
Lembrei a história contada por um amigo, de quando um motorista distraído bateu no carro dele. Provocou o maior transtorno, fez com que se atrasasse para uma reunião importante, ainda por cima ouviu uns xingamentos do condutor e saiu chateado, sem entender muita coisa. Por sorte, ele é uma pessoa absolutamente racional e se manteve calmo durante toda a conversa. Ao final, trocaram telefones para combinar o conserto do veículo. Eis que dias depois recebeu a ligação do homem, que estava envergonhado e queria pedir desculpas pelo acontecido. Relatou que voltava do hospital, onde tinha ido buscar o exame da filha, uma menina de cinco anos, que estava com câncer em estágio avançado. Meu amigo, além de comovido, ficou feliz por ter mantido a calma. Afinal, o que é um carro batido diante do resto?
A gente esquece, mas não sabe pelo que os outros estão passando. Vivemos em uma configuração padronizada, que valoriza algumas especificidades, como dinheiro e poder, que fazem acreditar que somos senhores de nossos pequenos reinos. Acreditamos que isso nos traz liberdade. Esse conceito é bem subjetivo. Concordo com Wallace, quando versa que “a liberdade verdadeira envolve atenção, consciência, disciplina, esforço e capacidade de efetivamente se importar com os outros — no cotidiano, de forma trivial, talvez medíocre, e certamente pouco excitante. Essa é a liberdade real. A alternativa é a torturante sensação de ter tido e perdido alguma coisa infinita”.
E quase no encerramento do discurso, ele traz a sentença chave do texto: a de que existe vida ANTES da morte, que está escondida nas pequenas obviedades ao nosso redor. Por isso, volta e meia, precisamos lembrar uns aos outros “isto é água, isto é água”.