O colchão, junto com o travesseiro, talvez seja o objeto da casa que mais entenda o que se passa dentro de nós. Ele dá suporte aos momentos de romance e volúpia, mas também aos de tristeza e preocupação. Nas noites insones, percebe o corpo revirar-se sem trégua. Nos dias de preguiça, acompanha-o imóvel. Nos momentos de amor, observa até a falta de espaço para tanta empolgação.
É em cima dele que algumas conversas divertidas acontecem, onde decisões são tomadas, onde segredos são ocultados, onde aquilo que guardamos dentro ganha companhia. Ao deitarmos nossa cabeça, somos só nós e o que nos alegra (ou angustia). Ele recebe a nossa energia e, felizmente, sabe guardar segredos. Risos.
Pode-se dizer que seja, também, o objeto mais íntimo da casa. Aquele que poucas pessoas conhecem e que revela um certo recato do dono ao não expô-lo. Todos sabemos os limites entre o público e privado, ao menos quando isso se refere a nossa vida. A linha entre esses dois universos é cada vez mais tênue, eu sei.
Num mundo imagético, a exposição se torna inevitável para boa parte das pessoas. Vale a construção de uma história, e as fotos pensadas para dar veracidade a ela –, mesmo que não contenha verdade nenhuma. Mas, percebam, nos preocupamos e somos impactados com o que vemos nas redes. Mas, e na vida?
Noto que é mais difícil ser comovido pela vida real. O que chama atenção é a amiga hospedada no La Mamounia, em Marrakesh, e a analogia entre a vida dela e a minha. Até achei que tinha ficado num hotel bacana quando estive no Marrocos mas, no comparativo, essa afirmação não faz sentido. E, ainda menos agora, enquanto trabalho numa cidade fria e chuvosa. Está mais fácil se frustrar com banalidades, né?
Durante a semana, entre o trajeto de ida e retorno de casa à redação, tive a atenção capturada pela quantidade de colchões que encontrei pela rua. Justamente o símbolo da intimidade e reclusão, escancarado a quem quer que seja. Antes da primeira esquina, vi um sem o “dono”, com o lençol ensopado na parte de baixo, porque estava encostado em uma poça. Imaginei como deve ser triste dormir ao relento nesses dias úmidos. Um pouco mais para frente, um colchão de casal, com as cobertas emaranhadas em cima, repousava sobre uma marquise do Centro. Ao lado, um vendedor de flores e a vida em movimento.
Essas cenas se repetem tantas vezes que mal olhamos para elas. Vemos colchões na calçada e não nos importamos tanto. Sei do contexto que leva as pessoas para a rua e as mantêm lá — apesar de tentativas e programas públicos para levá-las a um lugar mais adequado — e não quero falar desse universo, que é muito mais complexo. Penso sobre a banalização do cotidiano.
Do mundo imagético perfeito das redes que contrasta com a realidade sob os nossos pés. E de como filtramos essa realidade. Parece mais fácil invejar uma imagem (ou um conceito) do que agradecer por ter a privacidade como opção. Focamos no que nos falta — mesmo que falte bem pouco —, em vez de festejar o tanto que conquistamos. O que precisamos, de verdade e com urgência, é de uma transposição de sentido.