Quanta subjetividade é necessária para dar conta da dureza dos dias? Fiquei com essa pergunta em mente, depois de ter contato com duas obras que, recentemente, me tocaram, cada uma a sua maneira. É óbvio que precisamos de respiros tanto quanto precisamos de clareza para enxergar o nosso valor. Por mais difícil que seja, a gente deve reconhecer e celebrar nossas pequenas conquistas — é só tentar se ver de forma mais generosa que as evidências aparecem, tenho certeza.
Uma dessas brechas de subjetividade veio da leitura de Tudo é Rio, de Carla Madeira. Comecei o (incensado) livro da escritora mineira na chácara, num final de semana ensolarado. À primeira vista, a obra é tudo aquilo que a crítica promete: bem escrita e cheia de frases de impacto, daquelas bem instagramáveis.
A história se desenrola de forma interessantíssima e fora das convenções até o final, quando decepciona. Impossível não terminar indignada com a protagonista e, até, com a autora. O encantamento inicial virou frustração, porque não encontro explicações para a relativização da violência e do abuso contra a mulher. Mas não vou dar spoiler, nem me alongar na resenha, porque não é o caso. O que interessa, entre tantas sentenças bem bonitas do livro, é a parte que quero destacar aqui — daquelas que ficam, dentro, por muito tempo.
A mãe da protagonista, ao despedir-se da filha que estava muito infeliz, diz para ela ficar com Deus. Ao que ela responde: “Deus, mãe? Deus não me dá nada, só tira”. Então a mãe decide escrever uma carta para ela durante a viagem de volta. E o texto é daqueles que eu gostaria de ter escrito, com partes como “O problema não é Deus, é o que inventamos Dele (...) Pedir a Deus para não sofrer é como pedir para voar. Mas a gente pede assim mesmo e depois fica com raiva do pobre coitado. (...) A gente passa a vida pelejando com o dilema de existir ou desistir, com o que é bom e o que é ruim, o certo e o errado, a morte e a vida. Essas coisas não se separam. O lugar que dói é o mesmo que sente arrepios. É no corpo, no amor e na liberdade de escolher as coisas que a gente fica inteiro ou despedaçado. Então, pede para a parte boa dar conta da parte ruim”.
De tirar o fôlego, né?
Aproveito, então, a deixa da Carla na página 138, para falar de outro momento em que a subjetividade vira uma espécie de salvação. Ela aparece como pano de fundo de uma das falas mais potentes que já ouvi, na entrevista que a atriz Viola Davis deu a apresentadora Oprah Winfrey — Um evento especial, registrado pela Netflix. O mote é o lançamento da biografia da atriz, que decidiu escrever na pandemia, quando teve uma crise de propósito e quis entender com o que se identifica. É imperdível. Assistam, se ainda não o fizeram.
Viola, atriz ganhadora de um Oscar, um Emmy e dois Tonny Awards, decidiu voltar ao início da própria história, para encontrar sua forma mais pura — quantas vezes tentamos abandonar quem fomos? Entre as revelações, aparecem relatos de uma infância miserável, numa casa congelante sem aquecimento, infestada de ratos que comiam o rosto de sua boneca, sem comida, permeada por violência e abuso. Conta, então, que a memória que a define é como uma garotinha de oito anos, no terceiro ano, que corria para não ser agredida com tijolos e pedaços de pau por garotos que a chamavam de “crioula feia”. Ela saía rapidamente da escola correndo, gritando palavrões, achando que era durona. Percebeu, então, que nunca parou de correr, apenas os pés deixaram de se mover. A diva do showbiz ainda era a menina traumatizada.
O entendimento sobre os fatores que a ajudaram transcender é tocante. Fala muito em amor (amor-próprio, inclusive) como antídoto e busca. Traz uma definição linda sobre perdão como sendo “desistir da esperança de que o passado podia ser diferente”. E mostra que todos somos muito parecidos: estamos buscando fazer o melhor com o que temos. Aceitar isso e encontrar amor e compaixão pelo caminho são as possibilidades de mudar qualquer vida.
O segredo, para qualquer história bem-sucedida, talvez resida em não perder a capacidade de perceber que as pessoas são mais valiosas do que suas circunstâncias e o desejo é que elas também consigam nos enxergar de forma amorosa. Se isso ainda não acontecer, que a gente tenha a paz no coração para saber que, a seu modo, todo mundo está tentando, com os recursos que dispõe.