A Grazi, minha amiga jornalista que começou a aprender a pintar porcelana na pandemia, acabou se mudando pra Tóquio com a família no início do ano e passou a fazer aulas por lá. Em uma delas, aprende a criar pratinhos cheios de detalhes e de curvas, sempre pintados com um pigmento vermelho e que requerem um pincel específico, com cerdas muito separadas e que se reúnem com a medida exata de água. Os traços são muito finos e precisos e ela contou que leva dias para fazer um trabalho pequeno. Só consegue descobrir se a pintura ficou boa depois da queima – se os risquinhos não ficarem marrons, permanecerem vermelhos. A professora só fala japonês, o que ela não entende nem fala. Mas, pela observação, tem valido a pena o trajeto de quase uma hora a pé e de metrô para chegar à sala de aula.
Já no curso com outro professor, que criou uma técnica para dar movimento ao desenho feito com pincel, ela passou duas aulas – caríssimas, como quase tudo em Tóquio – desenhando um risco, uma espécie de vírgula na horizontal, na tentativa de que ficasse perfeito e pudesse seguir com as lições.
A parte curiosa e desafiadora é que, para pintar, ela não pode mexer o braço ou a mão, só deve mover os dedos e a posição do papel. Desmarcou a terceira aula porque ainda não tinha desenvolvido a habilidade e precisaria treinar mais.
Grazi me mostrou as pinturas que tem feito e eu achei todas lindas e fiquei impressionada como ela assimilou as técnicas rapidamente. Sim, ela tem uma habilidade manual incrível, é multitalentosa. Ela disse que se não estivéssemos conversando por vídeo, eu poderia ver os defeitos e que ela ainda está longe da perfeição. Até as vírgulas deitadas parecem carpas nadando pelo pratinho, como se dançassem balé para o mesmo lado. Depois de conversar longamente com minha amiga, fiquei feliz pensando na nossa capacidade de adaptação, na importância de desenvolver alguma espécie de resignação na vida e em como a passagem dos anos ajuda com isso. E também pensei em como dificilmente ficamos satisfeitos com o que fazemos, que nos cobramos mais do que cobraríamos os outros.
No caso da pintura, óbvio, existe uma técnica a ser seguida, mas uso essa percepção como metáfora. Se eu tivesse feito a pintura, tenho certeza que mesmo a supersincera Grazi não encontraria todos esses defeitos que ela vê no trabalho dela, porque a gente costuma não aliviar quando a questão nos envolve. Mas basta ter alguém que goste de nós para dizer “ei, calma, isso está muito bom; tu és ótima; olha para o teu percurso” para abrir nossos olhos. Sei que o importante é a percepção que temos de nos mesmos – é isso que determina nossa autoestima, nossa relação com o mundo –, mas ter alguém por perto para lembrar quem somos e de onde viemos, só potencializa o que temos de melhor dentro da gente.