Ao vencido, ódio ou compaixão; ao vencedor, as batatas.
Até quem não leu Quincas Borba sabe que essa é uma das frases mais emblemáticas do romance de Machado de Assis. O que talvez pouca gente saiba é que ela representa a síntese do Humanitismo, tese que filósofo Joaquim Borba dos Santos, o Quincas, apresenta em Memórias póstumas de Brás Cubas (1881) e aprofunda no livro Quincas Borba, publicado em 1891. Humanitas é o princípio de tudo o que existe. O conceito é apresentado ao leitor no sexto capítulo, em que o escritor dá voz ao filósofo para que ele o ensine ao amigo Rubião:
“Supõe tu um campo de batatas e duas tribos famintas. As batatas apenas chegam para alimentar uma das tribos que assim adquire forças para transpor a montanha e ir à outra vertente, onde há batatas em abundância; mas, se as duas tribos dividirem em paz as batatas do campo, não chegam a nutrir-se suficientemente e morrem de inanição. A paz nesse caso, é a destruição; a guerra é a conservação. Uma das tribos extermina a outra e recolhe os despojos. Daí a alegria da vitória, os hinos, aclamações, recompensas públicas e todos os demais feitos das ações bélicas. Se a guerra não fosse isso, tais demonstrações não chegariam a dar-se, pelo motivo real de que o homem só comemora e ama o que lhe é aprazível ou vantajoso, e pelo motivo racional de que nenhuma pessoa canoniza uma ação que virtualmente a destrói”.
Eis uma ode à sobrevivência dos mais aptos.
Lembrei-me da obra nessa semana por dois motivos. Um, por ver a nova edição lindíssima, recém lançada pela Autofágica, com artes de Samuel de Saboia, apresentação do Emicida e um dos posfácios assinado por Jeferson Tenório. Gostei da estratégia de usar artistas de diferentes áreas e com públicos distintos para dar uma roupagem contemporânea ao clássico do Século 19.
O outro foi a história do reciclador Wesley Zaqueu Soares, 20 anos, contada pelo talentoso colega Tiago Boff. O rapaz trabalhava num aterro sanitário em Novo Hamburgo, achou uma sacola com R$ 4 mil e devolveu ao dono, que estava desesperado atrás do dinheiro. Wesley recebe pouco mais de um salário mínimo por mês para trabalhar das 7h às 16h. À noite, estuda gastronomia, mas quer mesmo é ser policial rodoviário federal. Depois, em entrevista ao Timeline, da Rádio Gaúcha, ele disse:
— Honestidade aprendi com minha família. Espero que seja um exemplo para um 2022 melhor.
Eu também espero, Wesley. Porque, apesar do gesto lindo, é quase surreal que a honestidade seja vista como um diferencial e que ela vire notícia.
Além disso, desejo também que neste novo ano seja possível deixarmos de lado a inabilidade para perceber as singelezas, as pequenas grandes atitudes que dão sentido a tudo e viram motivos para agradecer — sem que a gente precise disputar as batatas com ninguém.