Tenho conversado com um monte de gente impressionada sobre como o ano voou até aqui, que os dias pandêmicos parecem se repetir sem muita surpresa e que a sensação de abatimento começou a ganhar mais força. Mas são as pequenas alegrias do cotidiano que fazem as marcações no calendário e são justamente elas que devemos perseguir.
Depois da sentença do Papa Francisco, ao ser abordado por um padre do Brasil com o pedido “Santo padre, reze por nós, brasileiros”, que respondeu com piada: “Vocês não têm salvação. É muita cachaça e pouca oração”, achei que pouca coisa surpreenderia mais na semana. Tenho amigas que vivem repetindo que o Brasil as obriga a beber. Amo quem tem senso de humor, que sabe interagir provocando o riso — e fico sem muita paciência para quem criticou a brincadeira por ser, justamente, uma brincadeira.
É muito curioso ver como as pessoas reagem de forma diferente aos acontecimentos da vida e aí está a graça de podermos conviver num mundo diverso. Nesta semana, jantei com o João e além de uma companhia agradável e divertida, presenciamos uma cena maravilhosa e inusitada. Quando fui buscá-lo, ele comentou comigo sobre o desconforto que sentia por ver pessoas morando sob a marquise do prédio em que mora, no Centro da cidade, sobretudo em dias gelados como os mais recentes. Contou que costuma interagir com esses moradores em situação de rua, oferece a ajuda que pode e fala especialmente com um deles, o Cabelo.
Após o jantar, ao levá-lo de volta para casa, antes que ele pudesse acessar a portaria, aparece um homem correndo na direção dele. Estava sem camisa, apesar de um frio de apenas um dígito no termômetro, e vestia uma calça branca, estilo de capoeirista. Tinha um corpo magro, com músculos bem definidos. E um cabelo raspado com um desenho, o que logo me fez supor que se tratava do tal Cabelo. Eles conversaram, até que João me apresentou a ele, que pediu desculpas porque estava treinando — eram 23h passadas —, disse que gostava de se cuidar e criticou um pouco quem não tinha essa preocupação. Antes de eu ir embora, ele pediu dinheiro — queria R$ 2, para fazer a sobrancelha. Fui para casa maravilhada de como a vida sempre ensina.
A primeira lição — e a mais difícil delas —, é não tirar conclusões precipitadas sobre ninguém. Cabelo, que integra uma parcela invisível da sociedade, estava orgulhosíssimo de sua condição, com uma autoestima invejável.
A segunda é exatamente o quanto a autoestima é fundamental. Muitas vezes, somos educados e pressionados para agradar aos outros, para servir, para sermos úteis. Crescemos com essa obrigação, sem que nos coloquemos no centro, sem que nossos interesses sejam levados em consideração. Aí, haja processo de desconstrução e (re) construção para dar conta de conseguirmos nos conectar com nossa essência, entender nosso lugar no mundo e nos colocarmos como prioridade. Tentar se comparar com qualquer outra pessoa é uma roubada sem fim — de perto, quase ninguém é o que parece.
A terceira lição é que as prioridades mudam de pessoa para pessoa: e quem somos nós para julgar o que é melhor para elas?
E a mais definitiva delas é que todo mundo tem uma história maravilhosa, a gente que não costuma parar para ouvi-las. O dia a dia anda meio caótico, há uma sensação de tristeza e desesperança, mas, em contraponto, também há um monte de pequenos momentos de leveza. Não dá para se alienar e achar que vivemos num mundo de felicidade das redes sociais, mas não podemos perder a perspectiva que existe, à espreita, sempre um pequeno universo pronto a nos surpreender.