Tu me fala de legado/ Só te queria do meu lado / Não fala do meu futuro/ Como se fosse o teu passado
Quando eu estava no ensino fundamental, lá pelos anos 1990 e que ainda se chamava primeiro grau, um dos passatempos favoritos da turma era responder a questionários que vinham em cadernos bonitinhos e eram passados de um lado ao outro da sala de aula. A primeira página sempre trazia a pergunta inaugural na parte de cima, “qual é o seu nome?”, que deveria ser respondido depois do número da ordem daquele que estava escrevendo. Isso servia para a organização das páginas seguintes, que traziam outras questões como “quem é seu melhor amigo?” ou “qual é seu prato favorito?”.
Assim, pela ordem, todos saberiam que a Tríssia, do número 8, tinha respondido Pâmela e frango a Sevilha. Eu adoraria encontrar algum deles para ver como nossas respostas eram parecidas, como os gostos eram ingênuos... Torço para que minha mãe tenha guardado sei-lá-onde, para que um dia apareçam do nada em uma busca qualquer.
A música favorita dos colegas costumava ser Faroeste Caboclo e todo mundo tentava decorar a letra, que às vezes vinha impressa em alguma revista, em época pré-internet. O fascínio que o hit do Legião Urbana provocava também residia no fato de durar nove minutos e três segundos, ter 42 estrofes com versos que não se repetiam, um baita exercício para a memória. Que tempo mágico, né?
Lembrei dessa brincadeira ao perceber como nossas lembranças são ligadas às músicas que fazem parte do repertório pessoal, evocam tempos passados que não têm a menor chance de serem repetidos, nos deixam com vontade de uma história que não vai mais ser vivida. E é justamente a graça (melancolia?) disso.
Algumas duram o tempo exato de um jazz francês, que pode ser bem curtinho. Outras têm o tamanho da produção musical de uma banda — tipo minha versão adolescente, tendo Jon Bon Jovi como muso, conversando com amigas no quarto adornado pelo pôster da banda. Que saudade!
Para uma pessoa que ama música, como eu, há sempre uma trilha sonora perfeita para um momento perfeito. E também tem aquela ideia de que, às vezes, a música pode ser uma espécie de bônus — “depois dessa, vou embora” — e a gente torce para que a playlist em ordem aleatória vá logo para Satolep/Noite/No meio de uma guerra civil, porque Joquin, do Vitor Ramil, dura oito minutos e vinte e oito segundos e, assim, dá para aproveitar a companhia um pouco mais.
Existe gente, aliás, que eu gostaria de ter por perto durante toda a execução de As Slow As Possible, do compositor norte-americano John Cage. Ela começou a ser tocada em setembro de 2001 na Igreja de St. Burchardi, em Halberstadt, na Alemanha, e deverá terminar em 2640. Companhias muito especiais merecem músicas para a eternidade, porque elas são menos melancólicas do que uma saideira bonitinha.