E, aí, garota, já se aquietou dessa mania de sonhar com o impossível? Espero que sim. É bonito sonhar de maneira tão destemida quando somos adolescentes, jovens adultos, talvez, mas seguir sonhando assim é patológico. Se ponha descalça, deixe esses pezinhos sentirem o chão e tente curtir isso.
Pensando bem, estou sendo injusta, não posso ser assim tão ferina com uma capricorniana que foi velha desde criança. Peço perdão, a realidade já te doeu o suficiente. Você nunca foi uma criatura iludida, só tentou com forças mil sobreviver a todas as mazelas de ser quem foi, vindo de onde veio. Garota, tu venceu demais, acredite.
Sabendo de tudo que tudo precisou suportar desde cedo, que tal seguir verdadeiramente em frente? Assumir essa sua personalidade imperativa e fazer de si, sua própria riqueza. Tenho tudo planejado e sua liberdade pode se tornar farto sustento. Torço tanto por você.
Daqui do seu passado, presente meu, os sinais são claros. Tu tem mesmo um brilho interessante. É lindo te ver indo na vida. Mãe dizia da sua centelha divina, lembra? Ela falava da criança que sorria enquanto todos choravam e contagiava a casa. A gente mal cria naquela conversa. Hoje, dentro da nossa existência tão terrena e, sobretudo, tão gentil e justa, é fácil compreender.
Não, não estou rasgando autoelogios ao léu. Só eu e você sabemos da dureza de estarmos destruídas e seguirmos gentis. A poesia do viver me acompanha. Ainda aí?
Garota, tu tem dimensão das possibilidades de vida plena que você constrói ao seu redor? Sabe quantas vidas você virou somente sendo quem é? Aposto que não. É que eu aqui também não sei. Essas são palavras dos nossos companheiros de trincheira de ontem e do agora.
O recado que te envio é: respeite seus limites. Você tem imensas fronteiras, no entanto você tem. Se algo aí dentro disser ‘chega’, não dê um passo a mais. Escute esse monstro que te habita, é ele quem te traz na guia, não o contrário. Todos te dirão para falar, mas ninguém quer ver te uivar.
Ah, espero que você não tenha ainda neuras com seu corpo. Passamos décadas com problemas de autoestima, superamos ali pelos trinta anos. Estou bem ciente da dureza de ser quem somos, mas, mana, lutei por isso, foi uma das minhas maiores vitórias, espero que você esteja lustrando nosso troféu.
Sabe, em suma, tivemos uma boa vida. Amamos muito, fomos amadas. A gente teve poucos, mas excelentes amigos — não precisamos e nem damos conta de muita gente. Contrariamos as estatísticas de mulheres periféricas e avançamos muito na vida, socialmente falando. E, o melhor de tudo, a gente é mãe da Pilar, uma onça-humana, que é tudo o que sempre sonhamos.
Quando você desenterrar essa carta digital, imagino que já tenha seus quarenta e tantos. Você ainda é bela, sexy e inteligente, tenho certeza. Peço desculpas pelos transtornos no caminho, eu não podia mais abrir mão de mim.
Mas, me diga: a gente está bem, aprendemos a chorar, nossas dores ainda saem no jornal? Rezo para que sim.