Minha mãe se aposentou quase no mesmo ano em que a PEC das Domésticas virou realidade. Para ela, não foi revolução nem retrocesso; foi só mais um ponto final na rotina cansada que já carregava há décadas. Mas, se essa PEC tivesse vindo antes, talvez minha história com ela fosse outra. Talvez eu tivesse uma mãe de verdade, dessas que a gente vê na televisão ou nos livros — aquelas que estão presentes, que cuidam sem relógio marcando o fim do expediente.
Mas não foi assim. Ela trabalhava, e eu crescia sozinha. A maternidade dela ficou amarrada nas casas dos outros, nas roupas que passava, nos banheiros que lavava, e eu ficava ali, no meio, meio sem saber de onde vinha o colo. Agora, na vida adulta, o preço disso não é só saudade; é confusão. O que era dela? O que era meu? Não sei. Sento do lado dela, já com seus quase 80 anos, tentando desvendar quem é essa mulher que passou pela minha vida como uma sombra ativa, mas distante. E, mesmo com todo esforço, ainda me falta o essencial: a intimidade que nunca existiu.
Dizem que o tempo cura. Será? Porque o tempo passou, mas só fez nos afastar ainda mais. Enquanto ela gastava os anos nas casas dos outros, eu gastava os meus tentando entender quem eu era sem ela. Talvez, se a PEC tivesse vindo antes, as folgas seriam mais do que um número na lei. Seriam finais de semana nossos, histórias compartilhadas, alguma coisa pra guardar além das ausências.
Não é que eu guarde rancor, não. Rancor é pequeno demais pra conter tudo isso. O que sobra é só um vazio que ecoa, uma espécie de saudade do que nem chegou a ser. Claro, tem risos aqui e ali — afinal, rir é uma forma de sobreviver. Foi assim que vivi grande parte da minha vida: entre risadas e uma escala de trabalho que eu mal entendia, mas aceitava como regra.
E, falando nisso, você viu a história dessa PEC do 6x1?Outra PEC que trata da problemática das crianças que são crias de si mesmas, sem pais em casa. Pois bem, a ideia é regulamentar a folga depois de seis dias de trabalho. Uma lei que vem tarde, mas ainda vem. E sabe o que é irônico? Que eu vivi anos nesse esquema. Trabalhei seis, folguei um. Não vi mainha, não consegui limpar a casa toda, não fiz as compras do mês — o mercado estava fechado. Um ciclo exaustivo que me deixou marcas que só a terapia parece querer decifrar. Por isso estou lá, no consultório, toda semana, desenrolando as camadas dessa vida corrida e dessa ausência de pausas.
Não quero ser dramática (risos). Eu sou goiana, afinal, e a gente tem um jeito de fazer piada até com o que machuca. Mas, morando tanto tempo no Sul, aprendi também a guardar quieta algumas mágoas, porque ali o frio ensina a gente a não se expor tanto. Só que, hoje, juntando esses pedaços — a goiana, a filha, a mulher que viveu 6x1 —, eu vejo que rir é bom, mas não resolve tudo.
Então, eu sento no sofá, do lado da minha mãe, e fico ali, tentando. Tentando buscar alguma coisa naquela senhora de mãos calejadas, que já deveria estar descansando, mas parece carregar ainda o peso de tantas cargas. Tento encontrar o que me foi negado — por sistemas, por leis tardias, por uma vida que não esperou nada. Tento, mesmo sabendo que talvez o tempo não me devolva o que foi roubado.
Mas, eu tento. Ai, Deus, como eu tento.