A depressão pegou minha mãe. Pegou de jeito, mas foi chegando de mansinho, sem fazer muito alarde, como aquelas dores que se instalam aos poucos, ocupando espaços que a gente nem vê. Pudera, depois de quase um século de existência, de um marido que se foi cedo demais e deixou pra ela sete filhos nos braços. Uma vida de perda e de luta – e ela sempre ali, vivendo para os outros, como se viver pra si mesma nunca tivesse sido uma opção. Minha mãe, feita de sacrifício e força, costurando a vida num remendo atrás do outro, até se tornar alguém que ela mesma talvez nem reconheça mais.
Ela trabalhou duro. Duro mesmo. Não foi escolha, foi sobrevivência. Limpou a sujeira dos outros com as próprias mãos, as costas dobradas, os olhos baixos e o rosto marcado pelo tempo e pelo peso da vida. Acordava de madrugada pra batalhar num mundo que nunca foi justo com ela, enfrentando sozinha cada obstáculo, sem descanso. E agora, olhando pra ela, vejo que aquela mulher forte, a que sempre suportou tudo, hoje anda perdida dentro de si, enredada numa tristeza que parece maior do que qualquer coisa que já enfrentou.
A casa, que antes era cheia de barulhos e histórias, está em um silêncio diferente. Não é aquele silêncio de descanso, mas um silêncio pesado, que sufoca. Vejo isso nos olhos dela, aqueles olhos que já brilharam tanto, olhos que viram de tudo – o marido indo embora, os filhos nascendo, a vida passando rápido demais. Agora, esses olhos andam apagados, carregando um peso que ela mesma já não consegue suportar sozinha.
E a depressão é cruel desse jeito: chega justo quando ela merecia estar em paz. Depois de uma vida inteira se entregando aos outros, agora essa tristeza a encontra, a empurra para um canto, fazendo-a duvidar de tudo o que foi. E quem é que vai explicar pra ela que não é culpa sua? Que essa tristeza vem de tantos anos segurando o mundo nas costas, de tanto engolir o choro pra manter a casa de pé?
Às vezes, tento arrancar dela algum sorriso, uma memória mais leve, aquela risada gostosa que ela dava quando eu era criança. Mas tá difícil. Parece que aquela mãe de antes virou só uma lembrança distante, uma fotografia amarelada, enquanto hoje ela anda perdida no próprio caminho. Fico me perguntando se, por trás da força, essa tristeza sempre esteve lá, e só agora resolveu aparecer, depois que os filhos cresceram e a vida deu uma desacelerada.
É doloroso ver minha mãe assim. Ela, que foi tudo pra tanta gente, que limpou, cozinhou, cuidou e segurou cada um de nós com suas próprias mãos, agora parece esvaziada de si mesma. E eu não posso preencher esse vazio, não posso devolver o tempo, o riso fácil, o brilho que parece que ela esqueceu em algum lugar do passado.
Queria que ela pudesse entender que essa tristeza não é fraqueza. Que essa dor é só o corpo e a alma pedindo um respiro, um pouco de descanso. Que até as fortalezas um dia cedem, e que não tem nada de errado em precisar dos outros, em se deixar cuidar. Queria que ela se visse como a gente vê – uma mulher que venceu, e que agora tem o direito de soltar o peso que carregou por tanto tempo.
Mas, por enquanto, a depressão a pegou, e eu só posso ficar por perto, respeitando o tempo dela. Deixar claro que, depois de uma vida inteira carregando o mundo, ela também tem o direito de descansar.