Eis outra crônica que nasce de uma postagem vista no Instagram. Como o assunto era gastronomia, associado ao signo de Câncer, por onde anda agora o Sol, então ok, que o vídeo imponha o menu da crônica. Nele, uma cozinheira conta que parou de usar alho e cebola no refogado do arroz, renegando uma tradição que ela mesma seguia, depois de levar um esporro de um chef francês com o qual tomava aula de feijoada. O chef teria criticado a mania brasileira de usar cebola em tudo e teria decretado, aos berros: “Arroz não é feito com cebola e alho!”. A cozinheira diz que preparou, então, o arroz à moda do chef, e terminou concordando com ele. Pronto: foi o suficiente para o caldo desandar nos comentários do vídeo.
Havia mais de mil opiniões, a maioria irada. Alguém questionava: “Ela foi ter aula de feijoada, sendo brasileira, com um gringo?”. Outro ironizava: “Obrigado pelo toque, moça, a coisa que mais prezo na vida é conselho de europeu de como se faz arroz e feijão...”. Outro atacava: “É só brasileiro vira-lata que aceita isso”. Outro atiçava o conflito internacional: “O mal de todo estrangeiro é achar que é superior”. Um apelava para a resistência radical: “Continuarei com meus três quilos de alho em tudo!”. E havia também um ponderado: “Repita comigo: cada um faz arroz do jeito que quiser”. E quem concordava: “Eu parei de temperar o arroz há muito tempo e realmente você consegue sentir o sabor”.
Impressionado com as camadas temáticas da discussão, segui lendo os comentários. Havia até pitadas de racismo e xenofobia: “Esse povo dá cada palco para o que gente branca diz! Nem brasileiro o cara é”. Alguém evocava sensatos conceitos antropológicos: “Peraí, a gente tem hábitos e cultura alimentar próprios, com base no tanto de outras culturas dentro da nossa”. Algum diplomata escrevia PAZ em maiúsculas, emendando: “Calma, gente, ela só falou do arroz, e cada um faz como quiser, ninguém está obrigando ninguém a nada”. E outro se dava conta do absurdo de tudo: “Meu Deus, olha a pauta da discussão, kkkk”.
Sei bem que esse tipo de polêmica belicosa é comum nas redes sociais. E sim, havia também petardos nada respeitosos e até vulgares. Mas o que me chamou a atenção no longo debate não foi a artilharia dos comentários: foi exatamente sua obviedade, pelo tema abordado. Como disse no começo, gastronomia é assunto canceriano. No signo da Lua, ligado ao que nos nutre emocionalmente, as referências são carregadas de afeto e subjetividade. É aquilo: não toquem no que me é caro afetivamente — senão vão conhecer as garras do meu defensivo caranguejo. Comida reporta a mãe, casa, família, memória, alma e, por extensão, ao pertencimento a um lugar, a uma tradição, a uma pátria. Sendo assim, gosto não se discute mesmo.
E por falar em batalhas e em comida, Rubem Braga comenta, no livro Crônicas da Guerra na Itália, o quanto os pracinhas de diferentes rincões do Brasil, juntos na luta contra os nazistas, mais se afinavam e se alegravam quando o tema das conversas era a comida de casa. “A grande irmandade é feita em torno de pratos de saudade — pratos que fumegam na imaginação, quentes e saborosos, com seu gosto de infância e de domingo”, escreve Braga. E o cronista alerta a mãe de cada pracinha sobre o fundamental na volta para casa, ao fim da guerra: “...providenciai para que haja sobre a mesa o prato familiar mais querido, e ele o comerá, eu vos digo, ele comerá alegria, ele comerá felicidade, infância, ternura boa”.
Agora imagine se vier um estrangeiro falar mal do arroz com alho da nossa mãe...