Recebi de uma amiga uma animação engraçadíssima, do canal da artista Rafaella Tuma no Instagram, em que um personagem atribui a Netuno a causa de seus perrengues. Daí que a Terra, em sua órbita espacial, grita ao outro planeta: “Ô Netuno, foi tu que tirou o trabalho do Gerson?”. E Netuno: “Pô, Terra, nem conheço Gerson nenhum, esse cara fica me acusando...”. E alega que, de tão longe no espaço, não teria como fazer o tal Gerson ser demitido.
Tadinho de Netuno. Eu mesmo sou um dos que jogam para ele a culpa de boa parte das confusões que me chegam. Mas bem sei que é apenas linguagem figurada do jargão astrológico. Os planetas não causam nada a ninguém, são meros marcadores de ciclos cósmicos, já que a Terra faz parte de um sistema junto com outros corpos celestes. São como ponteiros simbólicos de um relógio universal.
Se digo: “é meio-dia, ai que fome”, não é o relógio a marcar as horas a causa da minha fome. A vontade de comer a essa hora vem de meus próprios padrões naturais e culturais. Numa perspectiva holística, os ciclos dos planetas no céu ilustram ciclos vitais terrestres arquetípicos. Quando damos a um astro o mesmo nome do mítico deus dos mares, queremos espelhar nele, por analogia, o que na vida é fluido, evasivo e transbordante, feito um maremoto ou inundação.
Faz sentido ligarmos inundações a Netuno. Por extensão, projetamos nele tudo o que extravasa, dissolve limites e relativiza o real. Netuno rege das águas ao caos, das brumas às contaminações, das mitificações às mentiras, da entrega assistencial à redenção espiritual. Quando esse astro faz ângulo tenso com outro, daqui da Terra esperamos um tempo de confusões e fragilidades, mas com o potencial de fecundar uma nova ordem após a dissolução da antiga.
Netuno vem transitando pelo signo de Peixes desde 2012. Nos últimos anos, o Brasil, país de Virgem (“nascido” a 7 de setembro) atravessou uma densa bruma netuniana, vide negacionismos, mentiras em escala industrial e a perigosa mistura de religião com política. Na posição em que agora está, no final de Peixes, Netuno afeta diretamente, por oposição, justamente o estado brasileiro que tomou como “nascimento” o 20 de setembro, gravado na própria bandeira.
Sim, Netuno está a obscurecer o Sol do Rio Grande do Sul. E a inundação veio literal. Toda uma mitologia identitária é desafiada. O aquoso Netuno é o que funde, jamais o que define ou separa. É o que amolece, jamais o que impõe. Assim, não cabem visões separatistas nem orgulhosas, mas o usufruto de um bom sentimento de pertencimento amoroso. Não a frieza das restritivas ideologias, mas o calor da compaixão que acolhe e se deixar acolher.
Como Netuno é o regente das imagens, cabe comentar duas, envolvendo o cavalo, ícone cultural gaúcho. No final de março, o gaúcho Matteus, confinado na casa do Big Brother Brasil, caiu no choro ao ver um vídeo de seu cavalo Chupim. Muita gente de fora estranhou: tudo isso por um cavalo? Mas os gaúchos entenderam bem o significado da cena. Um mês depois, já na enchente, a imagem do cavalo Caramelo resistindo no topo de um telhado correu mundo. Comoveu a todos, mas fez sangrar o coração dos gaúchos. Ah, ali estava um pedaço de si mesmos, impotente e vulnerável. Pode haver situação pior para o mito do combativo peleador?
Desde a mitologia, lidar com Netuno nunca é fácil. Mas toda bruma tem seu tempo. Depois de tudo é que vamos perceber o quão longe pode nos levar um coração que precisou sangrar para redescobrir o que é mesmo vital.