Meu caro Chico, eu bem queria lhe escrever, porém não tenho o seu e-mail. Mas nesse clima de parabéns pra você, vou lhe contar um devaneio. Imaginei ouvir todo Brasil cantar, num mesmo coro, A Banda e Olê, Olá, depois Valsinha, Roda Viva e Vai Passar, só pra mostrar como você traduz a alma da gente. Tão lindamente, um Sol de cura ia raiar, curando a dor do povo após a escura madrugada, revelando a grandeza de uma nação tão judiada, e a arte a nos libertar.
Caro Chico Buarque, desculpe a brincadeira geminiana de tentar encaixar minha crônica na métrica de sua canção. Caramba, aí é que fui ver a sofisticação da composição! Nenhuma palavra à toa, tudo exato. E ainda há subtextos e contextos. Quem pode questionar o rótulo de gênio que só você humildemente recusa? Você completa 80 anos a 19 de junho e, aqui, na condição de quem tanto lhe deve em formação cultural e em exemplo de artista e de cidadão, faço uma pessoal louvação.
Poucos geminianos são tão autenticamente geminianos quanto você, que nasceu com nada menos que seis astros no versátil signo da mente — Sol, Lua, Mercúrio, Vênus, Saturno e Urano. E todos no alto do céu, como a reverberar no mundo um natural propósito de tradutor e porta-voz do seu tempo e da sua gente. O signo ascendente em Virgem refina ainda mais seu papel de observador atento a tudo, além de lhe conferir enorme rigor e a já conhecida timidez. E ainda reforça a importância de Mercúrio, dominante do mapa.
Você o conhece bem, Chico. Mercúrio é o mesmo Hermes, o “deus sonso e ladrão” do qual você falou em Choro Bandido. Aquele que fez “a primeira lira, que animou todos os sons”. É o malandro divino e sedutor, o fingidor poeta, a transitar entre universos diferentes, a inventar linguagens e conexões. Com a mesma Lua em Gêmeos do Brasil, você sempre soube reconhecer nesse país tropical a manha criativa dos periféricos de “perna comprida e muita malícia, pra correr atrás de bola e fugir da polícia”. Sim, você falou como ninguém dos céus e infernos que somente a Mercúrio era dado transitar.
De asas nos pés e mente lúcida, o mensageiro em você tirou mundos do caos ao nomeá-los por primeiro — e tudo principia no verbo. Quanto mistério, Chico, somente se iluminou a nós pela sua palavra! A alma feminina, os desvãos das humanas emoções, as injustiças cristalizadas nas estruturas sociais, a liberdade vital como o ar... E tanto saber nos foi sempre oferecido embrulhado na melhor poesia, na melhor música, na alta literatura. Sempre com a mais depurada inteligência, de alcance popular, sem pedantismo. Como não sentir orgulho de você?
Ah, quisera eu, como imaginei no começo, que o Brasil inteiro estivesse a lhe exaltar — o que seria celebrar a si mesmo como povo mestiço e original. Mas esse nosso complexo e complexado país anda trevoso ainda, Chico, com tantos a desejarem reviver páginas infelizes de nossa história, e tantos a vagarem por aí, cegos de ressentimento, erguendo estranhas catedrais de ódio. E odeiam você, é claro. Mas esse sanatório geral vai passar. Amanhã vai ser outro dia.
Por isso, numa imaginária feijoada completa, termino aqui cantando sua resposta a esses surtos de insanidade: que tal um samba? Perfeito, Chico! A cultura brasileira, nosso melhor espelho, sempre nos salva, apesar dos ataques sofridos. Vamos nessa: “De novo com a coluna ereta, que tal? / Juntar os cacos, ir à luta / Manter o rumo e a cadência / Desconjurar a ignorância, que tal? / Desmantelar a força bruta / Então, que tal puxar um samba?”.