Então é Natal, tempo de anjos. Suas imagens estão em toda parte: nas vitrines do comércio, nas etiquetas de presentes, nos cartões virtuais ou impressos, nas luzes das decorações temáticas, nos pinheirinhos enfeitados. Não pode haver Natal sem anjos, já que essas figuras se destacam nas narrativas fundadoras das atuais celebrações. Lá nos evangelhos bíblicos, eles foram porta-vozes do sagrado, anunciando a chegada do ser especial que mudaria o mundo. Anjos são, antes de tudo, mensageiros. Transitam entre o céu e a terra, revelando aos humanos os planos divinos.
E foi mesmo intenso o trânsito angélico em torno do nascimento de Jesus. Seis meses antes de anunciar a Maria que ela seria mãe do salvador, o anjo Gabriel já tinha avisado ao sacerdote Zacarias sobre o filho que dele haveria de nascer, o profeta João Batista. Já José também fora avisado em sonhos por um anjo sobre a gravidez miraculosa de sua virgem noiva Maria. Quando nasceu Jesus, um anjo comunicou a nova aos pastores que cuidavam dos rebanhos nos campos vizinhos. Nessa ocasião, o céu foi tomado por uma multidão angélica dando glórias. Para salvar o menino da fúria de Herodes, anjos voltaram a surgir em sonhos a José e também aos magos astrólogos vindos do Oriente.
Se as aparições angélicas costumavam inicialmente assustar os visitados – como a Zacarias –, suas mensagens por sonhos talvez tenham sido menos impactantes. Afinal, sonho é abrigo natural de maravilhas. É quando costumamos experimentar a demolição das fronteiras entre tempos e espaços. É quando podem se fundir o céu e a terra, o passado e o futuro. É quando, então, anjos podem chegar a nós, mortais, com seus avisos sobre o porvir. Sendo assim, sonhos são veículos da esperança. Tanto que usamos o termo sonho também para significar anseios, desejos, aspirações e expectativas.
É por aí que quero pensar hoje o Natal, menos por sua conotação religiosa e sua simbologia de emersão da luz, e mais como um despertar para o sonho. Opa!, despertar para o sonho não é um paradoxo? Pois que o seja! A crueza da realidade, nos últimos tempos, entre sonos atormentados e insônias, deixou os sonhos de escanteio. Quanto aos sonhos no sentido de desejos por realizar, como sonhá-los se, de novo, o real a tudo escurece com seus ventos de desesperança? E sem sonhos, ou alguma loucura sagrada, quem somos nós, senão – parafraseando o Pessoa – cadáveres adiados que procriam?
Nada é impossível num sonho. É nele que podemos ouvir a voz dos anjos anunciando milagres ou antecipando o futuro. Anjos também nos inserem num plano maior, divino, dando sentido até mesmo às questões mais absurdas. Precisamos deles como nunca antes. Para podermos compreender que a treva que ainda nos assola já estava por aí, disfarçada, e que sem examiná-la não a venceremos. Para podermos recriar alguma noção de amanhã que seja de paz e amor entre todas as criaturas. Para pensarmos numa fraternidade que acolha os excluídos – como um dia os acolheu o homem nascido em Belém naquele evento que ora celebramos.
Quero imaginar o Natal como um renascer dos sonhos, estejam estes na paz de um sono tranquilo, na confiança no futuro ou na visão de um mundo melhor que nos motive a criá-lo com fervor. Que o ruído de tantos estímulos e notícias não nos ensurdeça para a voz dos anjos. E eles estão a dizer que, apesar da insanidade dos dias, precisamos ajudar a salvar a luz de amor que insiste em renascer em nossos corações. Ouçamos os anjos. Ou o coração – dá no mesmo.