Canto com Gilberto Gil: “Louvando o que bem merece / Deixo o que é ruim de lado”. Andar com Gil é andar com fé. Esse canceriano com a Lua em Sagitário vive confirmando a própria declaração de que nasceu para animar. Agora, quando o Sol em Sagitário convida a buscarmos ânimo, em contraponto a tanta treva e tantas perdas, precisamos louvar o que bem merece. E como foi uma canção que puxou essa crônica, vou louvar uns discos que amo desde sempre e que, no espírito de celebração evocado, estão a completar 50 anos de lançados.
Os ares estavam pesados em 1971. Ditadura rimava com censura e tortura. Caetano e Gil viviam o forçado exílio londrino. Por outro lado, inovações pipocavam nas cabeças e nas artes. Foi quando Gal Costa estreou o show Fa-Tal – Gal a Todo Vapor. Um marco na história da MPB! Não somente pelo contexto político e social, mas pela costura – fiel às misturas do tropicalismo – do que era tradicional, como canções de Ismael Silva e Luiz Gonzaga, e do que ali despontava como novidade, vide a Pérola Negra do novato Luiz Melodia. Gravado ao vivo, o disco duplo reproduz o clima do show, indo do intimismo dorido ao desbunde roqueiro. E “oh, minha honey, baby”, esse é o disco que nos põe a nocaute com Vapor Barato.
Pouco depois, logo no começo de 1972, chegava ao Brasil Transa, gravado em Londres por Caetano. Foi outro petardo da época, e há quem o considere o melhor álbum do baiano. O espírito sincrético do tropicalismo também dá o tom aqui, em composições experimentais e cheias de camadas de significados. Como Triste Bahia, que relia a cultura brasileira à luz de sua gênese única, conectando a antiga crítica do poeta Gregório de Matos à moderna capoeira do Mestre Pastinha. Berimbau e guitarra, inglês e português, afoxé, samba de roda, samba canção, rock e até pitadas do nascente reggae: Transa tem tudo isso na medida exata. Tanto que até hoje soa inovador. Merece eternos aplausos.
Ainda em 1971, depois de um período de exílio na Itália, Chico Buarque lançaria Construção, outro marco da MPB. Era a confirmação em alta potência da habilidade do artista de mesclar rigor estético e refinado lirismo com a agudeza da crítica social. A impactante canção que nomeia o disco atesta isso, com suas proparoxítonas que pontuam a tragédia de um operário comum na máquina da tal cadeia produtiva. Entre versos censurados na duração daquela temporada de chumbo, Chico anunciava ao cordão dos despertos: “Ninguém vai me acorrentar / Enquanto eu puder cantar”. Sim, apesar da “concessão pra sorrir”, a arte estava a postos, mirando “a paz derradeira que enfim vai nos redimir”. Ainda hoje, esse disco é balsâmico.
Voltando ao Gil, louvo também seu Expresso 2222, lançado em 1972. De volta do exílio, era hora de ir além dos limites das fusões do coletivo tropicalista, agora com mais o saldo do que foi assimilado nos anos londrinos. “Back in Bahia”, Gil revisitou sua origem nordestina em acordes vanguardistas. A imagem psicodélica de um trem que rumava ao futuro – “pra depois do ano 2000” –, como na letra da canção título, indicava o tom geral do disco. Entre o fim da utopia hippie (O Sonho Acabou) e a abertura a outras filosofias (Oriente), Gil soube ser antena do que estava acontecendo no mundo, enquanto mirava o amanhã. Que é hoje.
Louvemos a arte brasileira, que resiste. Louvemos a estação do Sol, o verão, que se inicia na terça-feira, às 13h. Louvemos as luzes que hão de vir. Louvemos o que bem merece: a paz, a alegria, o respeito, a vida.