E a morte levou Gilberto Braga, meu autor de novelas preferido. Sei, já virou rotina recebermos, a cada dia, várias cacetadas como essa. Não bastasse o desalento de conviver com tudo o que nega a vida – mentira, ódio, fome, injustiça, morte –, como se normal fosse, ainda temos que sofrer com as baixas daqueles que viviam para iluminar os outros. A crueza é senhora, mas, sob o céu de Escorpião, é preciso insistir nas curas. É o signo em que nasceu e morreu Gilberto Braga e que também deu um tom peculiar a todas as suas novelas. Portanto, rendo aqui ao autor minha singela homenagem.
Convém lembrar que a novela televisiva, no Brasil, é o produto artístico de maior alcance na cultura de massa. Nada comunica tanto com tanta gente. As narrativas refletem o país e também pautam os debates públicos sobre temas essenciais. Nesse aspecto, certos autores se destacam, por conciliarem em suas obras o entretenimento do velho e bom folhetim com provocações que suscitem reflexões e mudanças. Foi o caso exemplar de Gilberto Braga. Nascido sob uma conjunção do Sol com Júpiter em Escorpião, ele foi um hábil criador de histórias que sempre exploravam os claros e escuros da alma humana.
No melhor estilo escorpiano, as novelas de Gilberto Braga expunham a sordidez disfarçada por convencionais posturas hipócritas. Por detrás de ricaços refinados e arrivistas sociais, sempre havia pulsões primitivas que desafiavam a moral e os códigos civilizados. Certos títulos de novelas suas já indicavam ânsias de poder, como Corpo a Corpo, Vale Tudo e O Dono do Mundo. Outros davam conta da potência irracional dos sentimentos, como Louco Amor, Força de um Desejo e Insensato Coração. Para o autor, o medo é um sentimento humano mais forte até que o amor. E ele foi mestre em mostrar dominações pelo medo. Mestre também em borrar as fronteiras entre o bem e o mal. Amávamos odiar suas vilãs ou odiávamos amá-las? Feitiço de gênio narrador.
Naquela que é considerada sua obra máxima, Vale Tudo, é nítido o ferrão escorpiano a serviço de alguma catarse libertadora. Era 1988 e, entre crises econômicas e políticas, o Brasil parecia afundar sob uma destrutiva lei da selva. Valia a pena ser honesto? Dessa questão, Braga teceu uma trama visceral, que tocou em chagas profundas do país. Foi uma elegia à valorização de uma ética sem a qual jamais haverá futuro. De quebra, imortalizou personagens como a solidária Raquel e as inescrupulosas Maria de Fátima e Odete Roitman. E criou imagens marcantes como a do empresário corrupto fugindo impunemente e dando uma banana ao Brasil.
Reprisada sempre com sucesso, Vale Tudo segue atual nesse país com tanto a transformar em suas estruturas. Em 2015, em Babilônia, o autor ousou expor de novo as entranhas da corrupção e da falsa moral. Mas fracassou: a novela foi boicotada e mutilada por uma onda de conservadorismo retrógrado que tomava o céu da pátria. E sabemos no que isso resultou. Hoje, num vale-tudo de mentiras e negações do real, vemos um país que prefere passar pano a passar-se a limpo. Por isso, sofro a perda de artistas lúcidos e incisivos como Gilberto Braga, que nos mostrou, no lúdico espelho da televisão, os medos e vícios que impedem o florescer de nossas tantas virtudes.
Como na canção que abria Vale Tudo, o Brasil outra vez mostra sua cara, e essa cara não é gentil. Mas podemos – e devemos – mudar. Já aprendemos com a novela do mestre: sem o humanismo compassivo de Raquel, sucumbiremos à fria ambição de Maria de Fátima.