Travessia: um palavra escorpiana. Ela encerra o monumental Grande Sertão: Veredas, em que Guimarães Rosa mapeia os sertões “do tamanho do mundo”, sejam fora ou dentro do humano. Atravessar é preciso, quase sempre sem bússolas ou mapas, quando “o real não está na saída nem na chegada: ele se dispõe para a gente é no meio da travessia”. “Coração da gente – o escuro, escuros”. “Viver é um negócio muito perigoso”.
Travessia também nomeou o primeiro sucesso do escorpiano Milton Nascimento, em 1967. “Quando você foi embora / Fez-se noite em meu viver / Forte eu sou, mas não tem jeito / Hoje eu tenho que chorar”. A morte se instala com o fim do amor, a vida perde o sentido. Mas há o tempo, há a força somente criada no enfrentamento da dura travessia. E surge alguma redenção possível: “Vou querer amar de novo / E se não der, não vou sofrer / Já não sonho, hoje faço com meu braço o meu viver”.
Travessia é palavra símbolo de nosso tempo. É o enfrentar o sertão dessa “espera enorme”, entre horrores e angústias. É o ruminar sem fim esses avessos do homem, como diria Rosa. É a dolorosa aceitação de que, às vezes, “comandar é só assim: ficar quieto e ter mais coragem”. É compreender que “a colheita é comum, mas o capinar é sozinho”. Travessia, enfim, é crer que a vida, ainda que cruel, “transfaz a esperança mesmo do meio do fel do desespero”.
Travessia também é a melhor palavra para sintetizar o denso e luminoso Vestígios de ontem, talvez (Poemas do Caderno Verde e três cartas de amor e morte), do historiador e artista plástico Juventino Dal Bó. Desde o lançamento, em julho, o livro, já percorrido de ponta a ponta várias vezes, tem me servido de guia de viagem nesses tempos de desalento. Os poemas e textos foram escritos ao longo de 40 anos, mas ganham agora, à luz da experiência coletiva da pandemia e do processo pessoal do autor de inventariar-se após a morte do companheiro, uma dimensão tão inspiradora quanto curativa.
Na maioria dos poemas, perpassam os fios da memória e da história, tão caros ao autor. Evocando de figuras míticas a ícones da cultura, versos refinados e comunicativos iluminam desejos, perplexidades e desassossegos humanos. Contudo, a meu ver, são os percursos de perdas que potencializam ainda mais o efeito desse livro como arte a clarear nosso tempo. “Tantos sonhos / tantas mortes / nestes últimos dias / deste ano cinzento / em que morri tantas vezes / (...) As trevas estendem seus mantos / as feridas estão expostas”. É quando a travessia do poeta é também a nossa.
Apesar de certa densidade temática, o livro não é de modo algum depressivo. Há uma belíssima contrapartida visual nas colagens e desenhos e no colorido de certas páginas, que, sem suavizar a contundência do texto, dão a ele outros contextos. Juventino não propõe nenhuma fórmula de superação a partir da própria experiência. Aliás, uma epígrafe inicial cita o poeta espanhol Antonio Machado: “Caminante, no hay camino / se hace camino al andar”.
Tampouco há certezas prontas. A dimensão inspiradora que percebo nesse livro vem da humana tentativa do poeta, após violenta tormenta da vida, de fazer com o próprio braço o seu viver: “‘Isto também vai passar’” / gravamos no livro de pedra / no jardim da nossa casa / Temos que ler isso todos os dias / para não esquecermos nunca”. É vida que segue, em travessias, como na canção do Milton.
E, sim, como escreveu Rosa – “Muita coisa importante falta nome” –, cabe aos artistas o nomear de todos os claros e escuros do existir.