Quem nasceu em 1941, ano do lançamento de Cidadão Kane, considerado o melhor filme de todos os tempos, jamais conseguiria escapar da sina do amor desmedido ao cinema.
Orson Welles, na época, tinha 25 anos, jamais havia dirigido um filme, sequer um curta-metragem. Poucos meses antes do lançamento, rompia o ventre de sua mãe um garotinho que dedicaria parte de sua vida a pesquisar, contemplar e guardar tudo que se referia a arte e, principalmente, à sua obsessão: o cinema.
Gavetas e armários abarrotados de VHSs, DVDs LPs, CDs, fitas-cassete, cartazes, fotografias, recortes de jornais, revistas. Ah, e também livros, não apenas de Literatura, haviam muitos livros sobre... cinema, é claro. Sem falar dos cadernos, listando filme a filme, um a um, os que assistia seja no telão ou na telinha de casa, com as respectivas fichas técnicas (diretor, roteirista, elenco, e etc).
Escrevo sobre ele, à sombra de sua morte, que me pegou de surpresa, na última terça-feira (21 de março). O Seu Nesi, nome completo Ruggero Gustavo Nesi, que nasceu no mesmo ano do lançamento de Cidadão Kane, amou obsessivamente o cinema. Pra mim, ele foi o último cinéfilo à moda antiga, romântico por natureza. Tinha seus preferidos, é claro, mas deleitava-se pelo cinema em si, não importando se era um western, um clássico, uma comédia pastelão, uma animação da Disney, ou um arrasa quarteirão.
Desconheço um cinéfilo de Caxias do Sul, com mais de 40 anos, que não tenha travado embates fervorosos com o Seu Nesi. Apaixonado pelas artes, obcecado pelo cinema, tinha uma queda irresistível pela informação, pela história por detrás das cenas e também pela fofoca que orbitava os astros. Seu foco estava ajustado em dissecar os elementos simbólicos contidos nas cenas, sim. Contudo, achava graça e se permitia dar boas gargalhadas assistindo Dumbo.
Afora alguns atritos, discussões sempre divertidas, reconheço, compartilhávamos do mesmo diretor estrangeiro preferido, o italiano Federico Fellini. Em entrevista à Mauren Pessin, publicada no finado jornal Folha do Sul, em outubro de 2000, Seu Nesi destacava da obra de Fellini, La Strada e La Dolce Vita. Eu vou morrer preferindo 8½ e Amarcord. Outro ponto em que concordamos é que Cidadão Kane é o melhor filme de todos os tempos. Nosso Pelé do cinema.
Na última vez em que nos vimos, há cerca de dois anos e tal, ele já não estava nas melhores condições de saúde. Além de um amigo cinéfilo, o Seu Nesi é pai de um grande amigo, o Guto Nesi, o poeta maldito sobre quem escrevi dias atrás, quando o assunto era o revista Invertebrado e a belíssima entrevista com o poeta maldito Glauco Mattoso. Enfim… Assim que o Seu Nesi nos viu (eu, Jorge de Jesus e Lindonês Silveira) entrando em seu apartamento, foi logo tratando de abrir gavetas e armários. Foi divertido. Uma cena que fica só pra quem viu.
Na mesma entrevista à Mauren, Seu Nesi reclamava há 23 anos do que hoje parece ter realmente perdido o sentido. “Uma pena que hoje não se discute tanto sobre arte. Esquecem que o essencial consiste em penetrar no âmago do processo cinematográfico. Muitos vão ao cinema mais motivados pela admiração do ídolo do que pelo roteiro”. Eu disse que o Seu Nesi era o último cinéfilo à moda antiga e romântico por natureza. Há 40 ou 50 anos, era preciso ser uma espécie de ourives pra encontrar ouro-cinematográfico, garimpando com parcas ferramentas. Hoje, qualquer bobagem viraliza no streaming.
Por fim, se tivesse de escolher só um filme pra sintetizar a vida do Seu Nesi seria Cinema Paradiso. Está tudo ali. Fade out, sem fim. Até logo, Seu Nesi! Guarda um lugar pra mim aí no cinema.