Antes de mais nada, aviso aos navegantes: o título dessa crônica é um plágio. "O Resto é Silêncio" é um dos romances de Erico Verissimo (1905-1975). Antes ainda, é a frase final proferida pelo príncipe Hamlet na peça de Shakespeare. Na tradução para a Língua Portuguesa, de Millôr Fernandes, Hamlet diz: "O resto é silêncio". E depois morre.
A morte causa sempre espanto. E na atividade corriqueira do Jornalismo é pauta que sempre ganha destaque, deixando outras prioridades pra segundo ou terceiro plano. Já tergiversando, mas sem me afastar muito do foco... Certa vez Arnaldo Jabor — o cineasta que, em período de estiagem de investimentos para o cinema brazuca, nos anos 1990, foi buscar emprego na imprensa — disse em seu habitual comentário na tevê, que para um filme ganhar o Oscar tinha de abordar histórias com crianças e cachorros. Reajustando o foco, poder-se-ia dizer o mesmo do material bruto com o que nós, repórteres, trabalhamos.
Em absoluto, tudo o que diz respeito à infância, sejam aspectos positivos, de incentivo e por aí vai, ou até mesmo desajustes familiares, ou ainda a morte de crianças, é pauta que ganha destaque. Com a mesma intensidade, pode-se dizer dos frequentes descuidos (pra não dizer maldades) a quem animais têm sido vilipendiados. Eu mesmo, enquanto repórter, em um desses finais de semana de plantão em que nem é preciso muito esforço de apuração, porque a tragédia sempre nos cai no colo, recebi a informação de que um guri estaria desaparecido num desses recantos do Rio Caí. Ver a família, ali à beira do rio e à espera de um milagre é estarrecedor. E com mil por cento de frequência, quando encontram o corpo, é pra chorar a morte por afogamento.
Nem tudo são espinhos, há várias flores pelo caminho na carreira de um repórter. Mas é preciso estar atento e forte, porque no cruzeiro da vida, quando avistamos apenas calmaria no mar à léguas de distância é porque lá na frente, onde ainda não alcança nosso olhar limitado, invariavelmente, há um tsunami se formando. Vidas perdidas são mais do que um número de CPF e RG, cuja foto é quase sempre desastrosa. Segundo estimativa do IBGE há 510 mil pessoas morando em Caxias. Dentre elas, foram registrados 166.818 casos positivos pra covid-19, gerando 1.689 óbitos. Isso tudo contabilizado até o dia 30 de janeiro de 2023.
Por maior esforço de reportagem, é praticamente impossível dimensionar a complexidade da vida de cada uma dessas pessoas que morreu. E trabalha-se incansavelmente pra puxar o fio da vida como se fosse um novelo, decifrando-o e resumindo-o de uma forma que o texto seja assertivo e honre quem se foi, sua família e amigos. E tudo isso em poucas horas. Porque no Jornalismo diário, o repórter não dispõe de 50 anos pra mergulhar na vida de alguém e produzir, ao final dessa jornada, uma obra que resulte em 2,5 mil páginas pra ser publicada em cinco volumes, como foi o caso da biografia "Dostoiévski - Um Escritor em Seu Tempo", de Joseph Frank.
O tempo nos corrói os calcanhares, o editor nos cobra o texto (mesmo quando não diga verbalmente) e, ao mesmo tempo, como repórteres estamos diante de um familiar que se esvai diante de nós. Apesar da dor que se sobrepõe, da angústia que cala, da lágrima que embaralha o olhar, há uma história por ser contada. E uma boa história depende de muitas vozes e olhares. Seja a morte de um intelectual, de uma poetisa, de coveiro ou do aposentado com covid que não pôde dizer adeus — que fosse por um aceno de olhar — à esposa e aos filhos. Assistir à solenidade de fechar o caixão é dureza, talvez pior do que isso é não poder deixar a tampa aberta.
No final das contas, o exercício da reportagem, que é a atividade de vida de um repórter, é, no fundo, a prática do humanismo. Apensar de objetividade e concisão, da checagem das informações, do espaço ao contraditório, é impossível não se sentir tocado pelo olhar do entrevistado. Pode ser o relato de uma vida com sacrifícios, mas que teve seu desabrochar antes da sentença final; ou a obra de arte que nos suscita o extraordinário-transcendental; ou a dilema de uma família que expõe a dispensa vazia e a total falta de perspectiva de emprego; a frieza na abordagem da inflação galopante; e como se conformar com a história do aposentado que, aos 70 e tantos anos, precisou aceitar o emprego de frentista, porque a aposentadoria não dá nem pra comprar remédios que retardam a morte?
Diferentemente da tragédia shakespeariana, contudo, ainda creio que depois do silêncio, nem sempre virá a morte. Ou ainda, que reportagens que abordem o suicídio, com clareza, sutileza e sensibilidade, podem, sim, ajudar a aplacar o ímpeto de quem se vê tão perdido a ponto de ceifar a própria vida. E pra isso, às vezes é preciso sentar-se diante de quem já tentou suicídio, pra ouvir não apenas que dor é essa, mas compreender como driblar — diariamente — essa mortífera alternativa. Joel Silveira (1918-2007), talvez o maior repórter brasileiro que o Brasil ainda desconhece, disse, certa vez: "Repórter que não é chato, não é repórter". Discordo, em parte.
Seu Joel, chatos somos todos, repórteres ou não, cada um à sua maneira, com seus destemperos e dissabores. O que não pode, Seu Joel, é deixar que a reportagem, a pedra bruta que vira diamante na mão de repórteres, seja desprezada em nome dos 40 segundos (e quase sempre muito chatos) dos milhares de vídeos que se digladiam internet afora. Aos repórteres, que ainda insistem em percorrer a contramão do fluxo algorítmico, que ainda escrevem sobre o que o google.com ainda desconhece, estes, sim, vão sobreviver ao ChatGPT, aquele software que, sagaz como o Diabo, agora vem nos tentar, dizendo que vai transformar o pão em pedra.
A pedra, Seu Capeta, é a nossa matéria-prima diária. Por causa dela, Drummond abriu não apenas um caminho, mas estabeleceu uma rodovia poética com quatro pistas de cada lado. Um sonho aliás, pra quem trafega na ERS-122. Ou melhor ainda, o dito trem ultrarrápido que promete levar-nos de Caxias a Porto Alegre em exatos 19 minutos. Sonhos vêm e vão, cabe ao repórter contar o começo, o meio e o fim de tudo isso, por todo o sempre. O resto é silêncio. Amém.