Dia desses lembrei-me da professora Loraine Slomp Giron. Entre as diversas notas biográficas ditas aqui e ali, outras registradas em reportagem, inclusive por mim, escapou de quase todos que conviveram com ela um detalhe singelo. Enquanto professora de Geografia, Loraine desenhava o mapa do Brasil à mão livre, com giz branco sobre o quadro negro. Cada região era delineada com seus contornos em perfeição e sem retoques.
Quando da morte do escultor caxiense Bruno Segalla, como um ato gentil da família, tive acesso ao seu atelier. Ainda estava úmida uma escultura em argila que o Segalla estava produzindo cuja temática sintetiza o sentido de sua vida: direitos humanos. E, mais do que isso, vi ali, em cima de uma mesa, os óculos do Dr. Henrique Ordovás Filho que serviram de modelo para o busto esculpido por Segalla e que atualmente se encontra no jardim do Centro de Cultura Ordovás. E olha só, uma das hastes quebrada estava presa por um esparadrapo branco.
Na sombra de uma árvore, cuja copa era gigante pra uma criança, em uma terra já esquecida pelo tempo, minha bisavó brincava com uma boneca de retalhos de tecido costurada por sua mãe. Sentada em sua cadeira de balanço, o relato cristalino me transportava pra cena, enquanto Thereza tentava esconder a lágrima que driblava os óculos de aros grossos e escorria por sua pele fina como um papel, característico de uma senhora de cem anos.
Conheci uma poetisa de Criúva que numerava um a um os poemas que escrevia à mão em cadernos pautados. Em 2008 ela já tinha escrito mais de 18 mil. Mais áspera do que a sua voz, cuja rouquidão delatava os inúmeros cigarros que fumava por dia, eram os versos que ela cunhava. “Casa vazia / cheira a abandono / cheira a saudades... ausência / nenhum brinquedo à vista... / somente retratos sorrindo”. Iraci Matilde Gazziero Dos Reis morreu sem ter sua obra publicada.
Nesta quinta-feira, dia 9 de fevereiro, faz 142 anos que morreu Fiódor Dostoiévski. “O homem é um enigma. Esse enigma tem de ser decifrado, e se você levar a vida inteira para fazê-lo, não diga que desperdiçou seu tempo; eu me ocupo desse enigma porque quero ser um homem”. Preso e condenado à morte, por um golpe de sorte e de última hora, foi enviado pra Sibéria, sujeito ao regime de trabalhos forçados por cinco anos. Tivesse sido fuzilado, Dostoiévski não teria escrito alguns dos mais importantes livros da história da Literatura.
Joel Silveira, um dos mais importantes repórteres que o mundo ainda não reconheceu, antes de partir para a cobertura da Segunda Guerra Mundial, recebeu do seu chefe Assis Chateaubriand a seguinte ordem: “O senhor vai pra guerra, seu Silveira. Só lhe peço uma coisa: não me morra. Repórter é pra mandar notícia, não é pra morrer!”. E não morreu na Segunda Guerra. Voltou, escreveu inúmeras reportagens, publicou cerca de 40 livros e nenhum sinal ainda de uma biografia que revele o enigma de ter sido Joel Silveira.
“Não se faz uma biografia com base apenas nas nossas lembranças”, ensina o mestre Ruy Castro, no recém lançado A Vida por Escrito – Ciência e Arte da Biografia. E complementa: “quem escreve uma biografia precisa também da memória dos outros e de muitos outros, para ter uma visão completa”. Além disso, é preciso ter sorte, inclusive pra não morrer antes de fazer acontecer.