"Eu tenho com Caxias uma relação de amor e ódio, assim como as filhas têm com as mães". A frase é de Loraine Slomp Giron, nascida em Forqueta, em 1936, graduada em História e Geografia e doutora em Ciências Sociais. Ela morreu quinta-feira (17), às 2h, no Complexo Hospitalar da Unimed, em Caxias do Sul, em decorrência do agravamento no quadro de pneumonia. A dualidade na declaração que abre este texto resume o pensamento de Loraine.
A historiadora, reconhecida na academia por suas pesquisas sobre a imigração italiana no Rio Grande do Sul, revelou seu amor e ódio por Caxias em uma longa entrevista, concedida ao jornalista Rodrigo Lopes, em 2016.
Aos 84 anos, concluiu sua jornada. Ela deixa dois filhos, Felipe, o caçula, com 58 anos e, Luís Antônio, de 61, além de quatro netos. Felipe comenta que nos últimos tempos a mãe demonstrava estar feliz por ter tomado as duas doses da vacina contra a covid-19 e também por poder discutir filosofia com o filho mais velho.
— Além da família, a grande paixão dela eram os livros. Ela lia o tempo todo e nestes últimos tempos estava adorando poder discutir sobre grandes filósofos com o Luís. Foi uma grande estudiosa, que deixou um legado que não vai se apagar — relata Felipe, emocionado.
"Eu tenho com Caxias uma relação de amor e ódio, assim como as filhas têm com as mães"
LORAINE SLOMP GIRON
(1936-2021)
É também da literatura que vem uma citação que tem a justa medida da importância da Loraine. Mulher que soube posicionar sua vida e obra, sempre que necessário, remando na contracorrente, avançando sobre a selva dura e fria, seja na academia, seja nessa estranha vida em sociedade.
O historiador Juventino Dal Bó fez uma declaração em tom de ode à Loraine, nas redes sociais. E começa, justamente, citando um poeta, o caxiense Ítalo João Balen:
"Na árvore da existência / há mortes diferentes / muitos caem como folhas / poucos como sementes..."
Juventino prossegue: "Estes versos traduzem o que sentem, neste momento, uma quantidade enorme de pessoas que foram alunos da professora Loraine Slomp Giron... Dificilmente poderemos dimensionar o que significou esta professora na formação de diversas gerações de gaúchos que escolheram estudar história".
Se a história se escreve enquanto se caminha por ela, a dimensão da obra de Loraine está na semeadura e, não apenas na colheita, como frisa o historiador e amigo Juventino. Além do plantio que se traduz em formação de um sem fim de novos historiadores, Loraine também participou, nos anos 1970, da criação do Museu Municipal Maria Clary Frigeri Horn e do Arquivo Histórico Municipal João Spadari Adami. Espaços por onde tantos e tantos têm se abastecido da memória que jamais vai cessar.
O escritor José Clemente Pozenato, autor de O Quatrilho, conviveu com Loraine. Apesar de não ter trabalhado diretamente com a historiadora, foi por ela citado, na mesma entrevista ao Rodrigo Lopes: "Caxias é uma cidade dura, como as matas que cobriam suas encostas pedregosas. Quem melhor cantou Caxias foi José Clemente Pozenato, natural de São Francisco de Paula, que a chamou de cabrita e cantou como nenhum outro suas misérias. Cabra encarapitada sobre um espigão."
Apesar da tristeza do momento, Pozenato aceitou conversar sobre o legado de Loraine. O escritor não se lembrava da citação da ex-colega de universidade.
— Na verdade ela está falando de um poema meu, Canto e blasfêmia para a Pérola das Colônias, que está no livro Mapa de Viagem. E eu não chamei de cabrita, mas de cabra montês — sorri Pozenato, apesar do dia cinza e triste do lado de dentro e de fora da alma.
O trecho a que se referia Loraine é este:
"Cabra montês, nesse alto, / não te contentas com o ralo / regime de ervas / teimosas / de entre as pedras".
Pesquisas que reverberam para além da Serra
No seu currículo acadêmico há 21 obras listadas, entre as de sua autoria, organizadas por ela ou com a colaboração de colegas, como Roberto Nascimento, Kênia Pozenato, Vânia Herédia e Heloisa Delia Eberle Bergamaschi. Alguns deles são emblemáticos, não apenas no cenário regional, como As Sombras do Littorio: O Fascismo no Rio Grande do Sul, Dominação e Subordinação: Mulher e trabalho na pequena propriedade, ou ainda, Presença Africana na Serra Gaúcha.
Apesar do enfoque regional, algumas de suas obras, como as citadas acima, servem como lupa, amplificando e jogando luzes sobre assuntos, ainda espinhosos, como o fascismo, e o papel da mulher e do negro na sociedade.
— Ela sempre foi uma profissional crítica da sociedade, que nos abriu a visão sobre o funcionamento das instituições e o papel da história. Colaborou por meio de suas pesquisas para esclarecer temas tão importantes como a história de Caxias, a história da imigração italiana, a história do fascismo. Sempre lembrarmos da Loraine pela sua influência na nossa formação — lembra Vânia Herédia, historiadora e parceira de trabalhos e pesquisas.
Loraine atravessou gerações, instigando alunos a observar a dinâmica da vida em sociedade. Muitos desses acontecimentos, centrais para a vida de Caxias do Sul, ela observou de perto. Afinal de contas, em uma cidade do interior tudo gira ao redor da praça e da catedral.
— A Loraine entendia bem Caxias. Ela pesquisou muito. Ainda na década de 1970, ela entrevistou pessoas que eram da segunda leva da imigração italiana. Ela viu de perto a cidade crescer, porque morava na Rua Dr. Montaury, bem perto da praça (Dante Alighieri) — avalia Lucas Caregnato, vereador e historiador, ex-aluno e bolsista de Loraine.
A historiadora nunca baixou a guarda para desferir sua verve crítica. No entanto, atribuem a Loraine uma visão humanista, de quem sempre esteve atenta e preocupada com uma sociedade livre e com justiça social.
— A Loraine sempre foi muito lúcida, nunca deixou a ideologia turvar o olhar dela. Isso se vê apenas em grandes cientistas sociais. Tem uma frase, ali na Casa da Cultura, que é atribuída ao Percy Vargas de Abreu e Lima (advogado), que diz: "Nada do que é humano nos pode ser indiferente". Pra mim, a frase representa bem a Loraine. E ela tinha o humanismo como projeto de vida. Nada e ninguém ficava indiferente pra Loraine — revela Ramon Tisott, historiador e ex-aluno e bolsista de Loraine.
Memória compartilhada
A seguir, confira o depoimentos de pessoas que conviveram e trabalharam com a professora e doutora Loraine Slomp Giron. Em comum, frisam o temperamento excêntrico, o tom crítico de seus posicionamentos e a obsessão por esmiuçar como a cidade se desenvolveu ao longo dos tempos. Mas há também a revelação da memória afetiva de quem caminhou ao lado dela nessa trajetória, de quem, apesar da acidez da sua visão sobre a sociedade, tinha uma devoção à essência do humanismo.
"Além da família, a grande paixão dela eram os livros. Ela lia o tempo todo e nestes últimos tempos estava adorando poder discutir sobre grandes filósofos com o Luís (Antônio Giron, filho mais velho). Foi uma grande estudiosa, que deixou um legado que não vai se apagar"
Felipe Giron, filho caçula
"Loraine marcou gerações e fez história como mestra, pesquisadora e escritora. Ninguém ficava indiferente a sua forma de dar aulas, muito vibrante, de corpo inteiro, a mente sempre trabalhando. Uma pessoa muito curiosa, perspicaz e que tinha uma contribuição a dar sobre qualquer assunto. Batia na tecla da importância de se cercar de documentos e leituras que permitissem abordar a história por todos os lados para formar uma base sólida. Uma fonte inesgotável de conhecimento."
Liliana Henrichs, historiadora
"Ela sempre foi uma profissional crítica da sociedade, que nos abriu a visão sobre o funcionamento das instituições e o papel da história. Colaborou por meio de suas pesquisas para esclarecer temas tão importantes como a história de Caxias, a história da imigração italiana, a história do fascismo. A convivência com Loraine sempre nos estimulou para o mundo das leituras, do conhecimento. Sua atuação na Universidade fez a diferença na formação de historiadores críticos. Sempre lembrarmos da Loraine pela sua influência na nossa formação."
Vânia Herédia, historiadora
"Ela foi uma excelente profissional. Como professora, como líder, defendia as causas de muita gente, sempre em prol daquilo que acreditava. Contribuiu muito com a história da nossa instituição, sendo inclusive presidente da ADUCS (Associação dos Docentes da UCS), entre 1991 e 1992 Uma perda pra todos nós. Fica a nossa imensa gratidão."
Evaldo Kuiava, reitor da UCS
"Na árvore da existência / há mortes diferentes / muitos caem como folhas / poucos como sementes... Estes versos do poeta caxiense Ítalo João Balen traduzem o que sentem, neste momento, uma quantidade enorme de pessoas que foram alunos da professora Loraine Slomp Giron... Neste dia frio, cinzento e triste, no auge de uma histórica pandemia que levou milhares de brasileiros, num triste e execrável período da história de nosso país, governado por gente que ela desprezava, eu a vejo levantar-se e dizer, de forma impactante, com toda sua dignidade 'Aviso aos navegantes que para mim chega' e sair batendo a porta... Dificilmente poderemos dimensionar o que significou esta professora na formação de diversas gerações de gaúchos que escolheram estudar história. Poucos entenderão o que significou para muitos estudantes, como eu, criados sob uma ferrenha ditadura militar, ter uma mestra libertária, que não aceitava limites, que compreendia as conexões entre arte, história, literatura, musica, poesia, cinema, amor, amizade... No momento que partes, os que você marcou, Loraine Slomp Giron, não se furtarão..."
Juventino Dal Bó, historiador
"A Loraine sempre foi muito lúcida, nunca deixou a ideologia turvar o olhar dela. Isso se vê apenas em grandes cientistas sociais. Tem uma frase, ali na Casa da Cultura, que é atribuída ao Percy Vargas de Abreu e Lima (advogado), que diz: 'Nada do que é humano nos pode ser indiferente'. Pra mim, a frase representa bem a Loraine. Ela é da turma da cidade, que ocupa esse Olimpo democrático, onde estão o Percy, o doutor Henrique Ordovás, o Bruno Segalla (metalúrgico, medalhista e escultor). É nesse lugar que ela está na história da cidade. No lugar onde está essa gente que se doou a vida inteira para que a gente pudesse realmente colocar em prática o projeto de humanidade. E ela tinha o humanismo como projeto de vida. Nada e ninguém ficava indiferente pra Loraine."
Ramon Tisott, historiador
"Não trabalhei diretamente com ela. Mas eu diria que tínhamos uma convivência estimulante, do ponto de vista intelectual. Às vezes ela tinha posições mais radicais. Sempre foi uma tendência dela, mas isso também é importante para se firmar posições para se colocar em debate. A Loraine pesquisou vários segmentos, não só da história da imigração, mas também da área da economia, organização industrial e comercial. O leque era amplo. O fascismo era um tema muito presente nas pesquisas dela. O livro As Sombras do Littorio foi uma referência importante para contextualizar a minha ficção, quando escrevi A Babilônia. O tema sempre foi tratado com muito receio e ela encarou de frente."
José Clemente Pozenato, escritor
"A Loraine era uma pessoa muito forte, conhecia a história da cidade como ninguém. Ela tinha um humor sarcástico sensacional. A Loraine dormia cedo e acordava às 3h ou 4h para escrever. Como aluno me chamava a atenção vê-la citar não apenas a obra, mas o capitulo, a página do assunto que ela estava tratando. Ela tinha sabedoria e não apenas conhecimento. A Loraine entendia bem Caxias. Ela pesquisou muito. Ainda na década de 1970, ela entrevistou pessoas que eram da segunda leva da imigração italiana. Ela viu de perto a cidade crescer, porque morava na Rua Dr. Montaury, bem perto da praça (Dante Alighieri). Ao mesmo tempo ela amava Forqueta, lugar onde nasceu. Como uma marxista, analisava a relação da macroestrutura com a micro e os reflexos dos retrocessos a nível nacional e como isso impactava a vida das pessoas."
Lucas Caregnato, vereador e historiador
"Foi uma historiadora renomada, tendo prestado muitos serviços em prol da universidade e comunidade caxiense. Sem dúvida, uma grande perda para o mundo acadêmico."
Adiló Didomenico, prefeito de Caxias do Sul
Reconhecimento
2010
Voto de Congratulações, Câmara de Vereadores de Caxias do Sul.
2009
Medalha Monumento Nacional ao Imigrante, Prefeitura Municipal de Caxias do Sul.
2000
Cidadã Emérita, Câmara de Vereadores de Caxias do Sul.
Algumas de suas obras
Em seu currículo acadêmico, a historiadora Loraine Slomp Giron tem registradas 21 obras, algumas delas escritas em parceria com outros intelectuais. Seu foco estava em esmiuçar a formação da sociedade serrana. Não ficaram para trás, inclusive, temas de grande relevância na atualidade, como os negros, as mulheres e o fascismo.
:: As Sombras do Littorio: o Fascismo no Rio Grande do Sul
:: Dominação e subordinação: mulheres e trabalho na pequena propriedade
:: Terra e Homens: Colônias e Colonos no Brasil (em parceria com Heloisa Eberle Bergamaschi)
:: Casas de Negócio (com Heloísa Délia Eberle Bergamaschi)
:: Presença Africana na Serra Gaúcha
:: História da Imigração Italiana no Rio Grande do Sul
:: Colonos e Fazendeiros: Imigrantes italianos nos campos de Vacaria
:: Caxias do Sul: evolução histórica
:: Imigração e cultura