Loraine Slomp Giron foi uma das maiores estudiosas da cultura da imigração italiana na Serra Gaúcha. Esmiuçou como poucos a formação da sociedade caxiense, a presença dos negros, a contribuição das mulheres — nas pequenas propriedades rurais ou como empreendedoras urbanas —, o cooperativismo vitivinícola, os vínculos da cidade com o fascismo italiano, entre dezenas de outros temas.
De postura e opiniões firmes, fez do conhecimento, da pesquisa e do ensino o eixo de sua trajetória - pessoal e profissional. Nas salas do Cristóvão de Mendoza ou da Universidade de Caxias do Sul, contribuiu para a formação de milhares de alunos, muitos deles hoje professores, mestres e doutores nas áreas da História, da Sociologia e da Filosofia.
Toda essa bagagem dialogava com uma personalidade meio rebelde, forte, combativa, que não raro costumava “destoar do coro dos contentes" e do conservadorismo local. Talvez por estudar e conhecer tão bem a cidade onde nasceu — na Forqueta, em 1936 —, Loraine foi também uma crítica mordaz de seus costumes e personagens.
Tudo isso apareceu em uma entrevista concedida a este colunista há cinco anos, em 13 de junho de 2016, às vésperas do aniversário de emancipação do município - que republicamos a seguir. Falecida nesta quinta (17), a três dias da mesma data, Loraine segue presente com seu legado de sabedoria sobre Caxias — de ontem e de hoje.
Pioneiro: O que Caxias tem a comemorar no próximo dia 20, data da fundação do município, em 1890?
Loraine Slomp Giron: É apenas uma data atribuída à cidade pelos políticos. A cidade não nasceu, a cidade foi se formando a partir da criação da chamada Colônia Caxias, em 1875. Com a chegada dos imigrantes, logo se cria o centro urbano. A sede da colônia ou núcleo colonial se chamava Santa Tereza, que mais tarde seria o nome da padroeira da cidade. É engraçado que Caxias não recebeu o nome da santa, mas manteve o nome da colônia. Os nomes Campo dos Bugres, de Santa Tereza ou mesmo o de Sede Dante seriam mais originais que o de Caxias, com três cidades homônimas. Pior ainda ficou quando, em 1946, passou a ser chamada de Caxias do Sul, do Rio Grande do Sul. Uma cidade que redunda no nome. A cidade cresceu de forma assombrosa em seus primeiros anos, com uma média de 2 mil colonos por ano. Quando se tornou município, em 1890, já era uma cidade com todas as outras do final do século 19. Qualquer uma das datas, seja da chegada dos imigrantes, seja da fundação da colônia ou das mudanças dos nomes da sede, poderia servir com a data de aniversário. O melhor são todos os 140 anos vividos pela região desde que ela começou a ser habitada. Foram 140 anos de muita luta, sofrimento e de muitos crimes e enganos, de muito roubo, enfim, tudo o que acontece em todos os outros lugares onde a indústria tomou o lugar da agricultura. Mas, ainda assim, de muita produção e trabalho. E não há nada mais importante que o trabalho para os caxienses.
Assim como dizem do Brasil, Caxias também não é para principiantes…
Loraine: Caxias é uma cidade dura, como as matas que cobriam suas encostas pedregosas. Quem melhor cantou Caxias foi José Clemente Pozenato, natural de São Francisco de Paula, que a chamou de cabrita e cantou como nenhum outro suas misérias. Cabra encarapitada sobre um espigão. Caxias ama os forâneos, quase todos os seus prefeitos e escritores vêm de fora. É uma cidade sem atrativos, onde as belas casas do início do século em sua maioria foram literalmente tombadas, e em seu lugar foram construídos prédios horripilantes, aos quais as administrações municipais concederam o habite-se, sem levar em consideração sua altura ou sua beleza. Uma cidade planejada em seu início, mas cujo início foi esquecido. Caxias já foi uma Antônio Prado, com suas construções de madeira. Eram lindos os antigos prédios de madeira de pinho com seus telhados pontudos e seus lambrequins recortados formando frisos decorativos nos beirais e nas sacadas. Material barato, que foi proibido pelos administradores da cidade, pelo perigo de incêndios. Faltou um projeto para Caxias da mesma maneira que não há projeto para o Brasil. E sem projeto as coisas dão no que dão.
E os caxienses, há algo que os envergonhe?
Loraine: Os novos caxienses adoram aparecer, mais do que ser. Antigamente, aparecer era considerado de extremo mau gosto. Mesmo os mais ricos viviam com simplicidade. Quem gostava das aparências e de aparecer eram os atores e as prostitutas. Os fatos vergonhosos, e são muitos, devem envergonhar seus autores, não a cidade. Os caxienses são uma coisa, a cidade é bem outra. Uns não tem nada a ver com a outra. A cidade é apenas um cenário, onde os dramas dos seus habitantes acontecem. Caxias é uma cidade de migrantes e de imigrantes, que rejeita ou exporta seus mais talentosos filhos e que adota os filhos alheios. Os caxienses são duros e agressivos como os colonos em geral. Ninguém perde a pátria e os seus pais sem dor. A dor endurece os homens, os transforma em pedra. Entender a falta de delicadeza do caxiense é entender a história dos desvalidos, daqueles que perderam tudo, até a língua que falavam. Os que perdem a língua materna perdem muito de sua identidade, tornam-se esquizofrênicos, assim afirma Contardo Caligaris. Os desacertos fazem parte dos caxienses, netos e bisnetos dos desvalidos colonos. Caxias é uma terra de imigrantes de migrantes, que nela aportam em busca de trabalho. De certa maneira, foi o exílio dos europeus imigrantes. Continua até hoje a terra dos imigrantes, a terra do exílio de dezenas de senegaleses que hoje enfeitam a cidade com suas cores.
O discurso de que Caxias perdeu sua identidade ainda procede?
Loraine: A identidade muda com o tempo. Os seres humanos, assim como as cidades, estão em constante mudança. A Colônia deu lugar ao município, a agricultura deu lugar à indústria. A indústria deu lugar aos serviços. A cidade ligada à produção primária não é nem pode ser a mesma da produção industrial. Da mesma forma, quando a indústria dá lugar aos serviços, a cidade ganha nova identidade. A identidade de uma cidade é construída no decorrer do tempo, como é construída a dos indivíduos. Creio que o que marca a cidade é exatamente a falta de marca. Caxias se tornou uma cidade como qualquer outra cidade de porte médio do Brasil. Minhas netas paulistas identificam Caxias com o bairro da Lapa (Rio de Janeiro), onde elas moram, não com Nova Petrópolis ou Garibaldi, que ainda guardam muito de sua primitiva identidade. O preço do progresso é a perda da comunidade. É a comunidade que marca as cidades menores. Caxias de há muito deixou de ser uma comunidade, é apenas mais uma comuna das muitas que há no Brasil.
Como Caxias lida com sua diversidade (social, étnica, sexual)?
Loraine: Desde seu início, Caxias foi a terra de imigrantes, terra de exílio dos europeus pobres que deixaram a então pobre e dividida Europa. Aqui se encontraram italianos de todas as regiões, do Sul e do Norte, dos mais variados dialetos e das mais diferentes ideologias. Vieram suíços, suecos, franceses, alemães, austríacos. Logo após a abolição, vieram os africanos recém libertos, que procuraram aqui, como os demais imigrantes, trabalho e meios de sobrevivência. Aqui conviveram homens dos lugares mais diversos, onde a união se deu pela língua. No fim da Segunda Guerra, a região foi invadida por centenas de italianos fascistas e alemães nazistas. Uma cidade que nasceu cosmopolita pela sua origem colonial, afinal colônia nada mais é do que um loteamento popular. Os pobres que queriam se tornar proprietários aqui conseguiram ascender na escala social. No começo, era uma sociedade sem classes, mas logo as diferenças foram surgindo. Com a ascensão social, surgem ricos e pobres, e com eles a discriminação social. A sociedade quase igualitária dos primeiros tempos foi substituída por uma sociedade excludente. Mais do que a cor, o que separa os caxienses é o dinheiro. Ricos e pobres raramente convivem, e em Caxias isto não é diferente. A ausência de discriminação só existe nas novelas da Globo.
Três coisas que despertam seu amor e ódio à cidade…
Loraine: Eu tenho com Caxias uma relação de amor e ódio, assim como as filhas têm com as mães. Coisas que poderiam ter sido melhores e que a inépcia administrativa impediu. Coisa que me constrange é ver as escolas com nomes de pessoas que em vida nunca as frequentaram, nem as auxiliaram em nada e que não tem nada a ver com o ensino e com a educação. Creio que é a sua falta de memória histórica o que mais me irrita, a falta de amor pelo passado e o esquecimento de suas raízes. Esta nova forma de aparentar o que não é. E por fim, esta espécie de hipocrisia crônica que faz doer os que a amam de verdade. Mas eu amo a sua culinária, o seu passado e a beleza das matas e das montanhas que escaparam da sanha das serrarias.