Loraine Slomp Giron sempre manteve uma relação de amor e ódio com Caxias do Sul, a começar pelo nome da cidade. Nascida na Forqueta, mudou-se para o Centro aos cinco anos. A então liberdade de ir e vir, brincar e correr pelos campos do longínquo arrabalde ganhou um ingrediente extra: um portão na Caxias dos anos 1940 - um simples portão de casa, baixo e inútil aos olhos de hoje, mas que, de forma simbólica, alteraria todo um cotidiano e começaria a moldar uma linha de pensamento: aquilo que liberta, fortalece vínculos e forja uma identidade, em oposição ao que cerceia, exclui e afasta.
O episódio é um dos tantos que a historiadora de 79 anos recorda ao ser questionada sobre o que Caxias foi, é ou julga ser. Neste mês de aniversário, em que a cidade diz reverenciar seu passado e suas origens, Loraine expõe outras nuances de uma Caxias que ela "ama odiar".
Pioneiro: O que Caxias tem a comemorar no próximo dia 20?
Loraine Slomp Giron: Em relação ao aniversário da cidade, devemos convir que não é um aniversário propriamente, mas uma comemoração arbitrária. Inventou-se que seria neste dia (20 de junho, data da fundação do município, em 1890) e não em outro. Não sendo aniversário real, tanto faz ser comemorado ou não. É apenas uma data atribuída à cidade pelos políticos. A cidade não nasceu, a cidade foi se criando e se formando a partir da criação da chamada Colônia Caxias, em 1875. Com a chegada dos imigrantes, logo se cria o centro urbano. A sede da colônia ou núcleo colonial se chamava Santa Tereza, que mais tarde seria o nome da padroeira de cidade. É engraçado que Caxias não recebeu o nome da santa, mas manteve o nome da colônia. Os nomes Campo dos Bugres, de Santa Tereza ou mesmo o de Sede Dante seriam mais originais que o de Caxias, com três cidades homônimas. Pior ainda ficou quando em 1946, passou a ser chamada de Caxias do Sul , do Rio Grande do Sul. Uma cidade que redunda no nome. A cidade cresceu de forma assombrosa em seus primeiros anos, com uma média de 2 mil colonos por ano. Quando de tornou município, em 1890, já era uma cidade com todas as de uma cidade do final do século 19. Qualquer uma das datas, seja da chegada dos imigrantes , seja da fundação da colônia ou das mudanças dos nomes da sede poderia servir com a data de aniversário. O melhor são todos os 140 anos vividos pela região desde que ela começou a ser habitada. Foram 140 anos de muita luta sofrimento e de muitos crimes e enganos, de muito roubo, enfim, tudo o que acontece em todos os outros lugares onde a indústria tomou o lugar da agricultura. Mas, ainda assim, de muita produção e trabalho, e não há nada mais importante que o trabalho para os caxienses.
Assim como dizem do Brasil, Caxias também não é para principiantes...
Loraine: Caxias é uma cidade dura, como as matas que cobriam suas encostas pedregosas. Quem melhor cantou Caxias foi o poeta José Clemente Pozenato, natural de São Francisco de Paula, que a chamou de cabrita e cantou como nenhum outro suas misérias. Cabra encarapitada sobre um espigão. Caxias ama os forâneos, quase todos os seus prefeitos e escritores vêm de fora. É uma cidade sem atrativos, onde as belas casas do início do século em sua maioria foram literalmente tombadas, e em seu lugar foram construídos prédios horripilantes, aos quais as administrações municipais concederam o habite-se, sem levar em consideração sua altura ou sua beleza. Uma cidade planejada em seu início, mas cujo início foi esquecido. Uma cidade de alvenaria nas quadras centrais e que era toda de madeira nas demais. Caxias já foi uma Antônio Prado, com suas construções de madeira. Hoje poderia ser tombada . Havia prédios de até quatro andares de madeira. Eram lindos os antigos prédios de madeira de pinho com seus telhados pontudos e seus lambrequins recortados formando frisos decorativos nos beirais dos telhados e nas sacadas. Material barato, que foi proibido pelos administradores da cidade, pelo perigo de incêndios. Faltou um projeto para Caxias da mesma maneira que não há projeto para o Brasil. E sem projeto as coisas dão no que dão.
E os caxienses, há algo que os envergonhe?
Loraine: Os novos caxienses adoram aparecer, mais do que ser. Uma novidade da cidade. Antigamente, aparecer era considerado de extremo mau gosto. Mesmo os mais ricos viviam com simplicidade. Quem gostava das aparências e de aparecer eram os atores e as prostitutas. Os fatos vergonhosos, e são muitos, devem envergonhar seus autores, não a cidade. Os caxienses são uma coisa, a cidade é bem outra. Uns não tem nada a ver com a outra. A cidade é apenas um cenário, onde os dramas dos seus habitantes acontecem. Caxias é uma cidade de migrantes e de imigrantes, que rejeita ou exporta seus mais talentosos filhos e que adota os filhos alheios. Os caxienses são duros e agressivos como os colonos em geral. Ninguém perde a pátria e os seus pais sem dor. A dor endurece os homens, os transforma em pedra. Entender a falta de delicadeza do caxiense é entender a história dos desvalidos, daqueles que perderam tudo, até a língua que falavam. Os que perdem a língua materna perdem muito de sua identidade, tornam-se esquizofrênicos, assim afirma Contardo Caligaris. Os desacertos fazem parte dos caxienses, netos e bisnetos dos desvalidos colonos. Caxias é uma terra de imigrantes de migrantes, que nela aportam em busca de trabalho. De certa maneira, foi o exílio dos europeus imigrantes. Continua até hoje a terra dos imigrantes, a terra do exílio de dezenas de senegaleses que hoje enfeitam a cidade com suas cores.
O discurso de que Caxias cresceu e perdeu sua identidade ainda procede?
Loraine: A identidade muda como tempo. Os seres humanos, assim com as cidades, estão em constante mudança. A Colônia deu lugar ao município, a agricultura deu lugar à indústria. A indústria deu lugar aos serviços. A cidade ligada à produção primária não é nem pode ser a mesma da produção industrial. Da mesma forma, quando a indústria dá lugar aos serviços, a cidade ganha nova identidade. A identidade de uma cidade é construída no decorrer do tempo, como é construída a dos indivíduos. Creio que o que marca a cidade é exatamente a falta de marca. Caxias se tornou uma cidade como qualquer outra cidade de porte médio do Brasil. Minhas netas paulistas identificam Caxias com o bairro da Lapa (Rio de Janeiro), onde elas moram, não com Nova Petrópolis ou Garibaldi, que ainda guardam muito de sua primitiva identidade. O preço do progresso é a perda da comunidade. É a comunidade que marca as cidades menores. Caxias de há muito deixou de ser uma comunidade, é apenas mais uma comuna das muitas que há no Brasil.
A Festa da Uva ainda pode ser considerada uma festa da cidade?
Loraine: A Festa da Uva tem menos da metade da idade da cidade. Foi criada para vender uma imagem da cidade da década de 1930, cuja principal produção era ainda ligada à agricultura. A imagem da cidade mudou e a festa, também. Faz muito tempo que a uva e o vinho deixaram de ser a marca da cidade, hoje um polo metal mecânico. É o anacronismo da festa que a marca. Tornou-se uma feira de variedades, uma feira de serviços. Ao se tornar uma empresa de economia mista, a Festa da Uva S/A tornou-se exatamente isto, nem mais nem menos. Para os visitantes pode ter algum atrativo, mas para os moradores o que atrai são os shows com os artistas do momento. Buscam-se subterfúgios para esconder o fato que ela não é mais o que foi e, assim como a cidade, ficou igual a muitas outras festas, que também são feiras.
Como Caxias lida com sua diversidade (social, étnica, sexual)?
Loraine: Desde seu início Caxias foi a terra de imigrantes, terra de exílio dos europeus pobres que deixaram a então pobre e dividida Europa. Aqui se encontraram italianos de todas as regiões, do Sul e do Norte, dos mais variados dialetos e das mais diferentes ideologias. Vieram suíços, suecos, franceses, alemães, austríacos. Logo após a abolição, vieram os africanos recém libertos, que procuraram aqui, como os demais imigrantes, trabalho e meios de sobrevivência. Aqui conviveram homens dos lugares mais diversos, onde a união se deu pela língua. No fim da Segunda Guerra, a região foi invadida por centenas de italianos fascistas e alemães nazistas. Uma cidade que nasceu cosmopolita pela sua origem colonial, afinal colônia nada mais é do que um loteamento popular. Os pobres que queriam se tornar proprietários aqui conseguiram ascender na escala social. No começo, era uma sociedade sem classes, mas logo as diferenças foram surgindo. Com a ascensão social, surgem ricos e pobres, e com eles a discriminação social. A sociedade quase igualitária dos primeiros tempos foi substituída por uma sociedade excludente. Mais do que a cor, o que separa os caxienses é o dinheiro. Ricos e pobres raramente convivem, e em Caxias isto não é diferente. A ausência de discriminação só existe nas novelas da Globo.
Três coisas que despertam seu amor e ódio à cidade...
Loraine: Eu tenho com Caxias uma relação de amor e ódio, assim com as filhas têm com as mães. Coisas que poderiam ter sido melhores e que a inépcia administrativa impediu. Coisa que me constrange é ver as escolas com nomes de pessoas que em vida nunca as frequentaram, nem as auxiliaram em nada e que não tem nada a ver com o ensino e com a educação. Creio que é a sua falta de memória histórica o que mais me irrita, a falta de amor pelo passado e o esquecimento de suas raízes. Esta nova forma de aparentar o que não é. E por fim, esta espécie de hipocrisia crônica que faz doer os que a amam a verdade. Mas eu amo a sua culinária, o seu passado e a beleza das matas e das montanhas que escaparam da sanha das serrarias, que destruíram a flora e a fauna regionais.