Tenho a impressão de que qualquer coisa escrita aqui sobre Loraine Slomp Giron seria lida por ela com aquele sorrisinho irônico de canto de boca, que sempre me intrigou. Acho que minha primeira lembrança envolvendo a voz da historiadora nas páginas do Pioneiro data de 2006, quando ergueram uma estátua de Baco descaracterizada (com tapa-sexo) lá em Forqueta, gerando a ira de Loraine. Anos mais tarde, quando eu já era repórter, tive a honra de conhecer parte de sua coleção de livros, na casa que ficava de frente para o antigo Ópera. Foi uma tarde cheia de histórias – me senti importante só de estar ali, compartilhando do conhecimento daquela enciclopédia humana (relembre abaixo a matéria, originalmente publicada no Almanaque, em 30 de julho de 2011).
Loraine sabia que era uma mulher f*, com o perdão do vocabulário, mas era exatamente essa afirmação que me vinha à mente a cada vez que lia/ouvia algo assinado por ela. Sorte nossa que boa parte do conhecimento e da personalidade da historiadora permanecerão imortais, seja nas inúmeras entrevistas concedidas, seja nas publicações acadêmicas, seja nas memórias de quem a conheceu.
O mundo na sala de casa
O acervo que a historiadora e pesquisadora caxiense Loraine Slomp Giron cultiva desde a adolescência é certamente maior do que muitas bibliotecas escolares e até mesmo municipais. Contando por baixo, como ela mesma faz questão de dizer, são uns 14 mil exemplares. Eles estão divididos em suas duas casas: uma em Forqueta, outra no coração de Caxias – em termos de comparação, a biblioteca particular do escritor português José Saramago, localizada em Lanzarote (Espanha), contempla mais de 20 mil exemplares, além de manuscritos pessoais.
– Fiz uma separação meio louca, levei para Forqueta 97 caixas com mais de 100 livros cada, deu um caminhão. Lá estão os de literatura, aqui (no Centro) tem fi losofi a, política e história – explica.
Loraine lê desde os quatro anos. Quando tinha sete, devorou literalmente de A a Z uma enciclopédia que habitava a estante de casa. Aliás, as primeiras lembranças do contato com os livros vêm mesmo de família:
– Meus pais eram assinantes do Clube do Livro e recebiam uma publicação por mês. Era comum ouvir minha mãe lendo para o meu pai na cama. E eu ficava escutando, acho que eles nem sabiam que eu ficava acordada até aquela hora.
Quando casou, aos 21 anos, o “enxoval” de Loraine tinha cerca de 300 livros, os quais não pôde levar para a nova casa.
– Eu sentia a falta física de ter eles perto. Sentia mais falta dos livros do que do meu marido – diverte-se.
Viúva desde 1975, Loraine vive muito bem acompanhada de centenas de autores, com histórias, ideias e teorias transbordando as prateleiras. A historiadora não se considera uma colecionadora, nem acha que possui preciosidades no acervo. Muitos exemplares, inclusive, foram recolhidos prestes a serem colocados no lixo por alguém. Além de mestres como Marx, Foucault e Hegel, Loraine diz apreciar literatura mais leve, como os policiais.
– Gosto de todos os gêneros. É como música, adoro clássica, mas conheço o Michael Jackson e a Lady Gaga – compara ela.
Loraine diz que empresta seus livros sem problema, mas não é modesta em afirmar que a maioria das pessoas que a visita pretende consultar a sabedoria da dona da biblioteca e não dos livros em si. Afinal, todas as publicações que estão ali foram digeridas por ela de alguma forma.
– Os que não foram lidos por completo, ao menos foram consultados – revela.
Apesar da quantidade exacerbada de títulos, Loraine não é uma compradora compulsiva, diz que só adquire o que precisa. O patrimônio, aliás, deve ser herdado pelos dois filhos. Mas a historiadora confessa não se preocupar com o destino que será dado aos seus companheiros.
– Os livros fazem parte da minha vida. Para mim, são bem mais importantes do que muitas pessoas. Mas esta é uma paixão minha. Livros são muito pessoais, são como roupa. Se quiserem vender tudo quando eu morrer, não estou nem aí – dispara.
O que importa mesmo é a enciclopédia que a historiadora construiu para si mesma, em décadas de leitura.
– Acho que se eu fosse um computador, já teria que ter sido trocado umas dez vezes. Minha cabeça parece um baú, com vários assuntos. Sou capaz de me lembrar de algo daquela primeira enciclopédia que li – orgulha-se.