Ainda sobre o Pelé. Mesmo depois de morto, velado e sepultado, o Rei, que ocupava em terra o corpo de Edson Arantes do Nascimento, seguirá sendo celebrado ao infinito. Diferentemente de um sem fim de personagens que, diariamente, saem de cena sem deixar sequer saudade. Depois da notícia de sua morte, reli diversas crônicas e perfis sobre o Rei. E fiquei pensando na estúpida ideia de escrever algo ainda não dito depois de todos esses anos em que o Pelé permaneceu no topo (e sempre estará, apesar da morte). E só me ocorre uma sentença: Pelé era a bola.
Sem voltar muito na linha do tempo, o nascimento do Rei Pelé, preconizado por Nelson Rodrigues meses antes da Copa do Mundo de 1958, foi consumado em um recorte mágico da realidade. “Pelé leva sobre os demais jogadores uma vantagem considerável — a de se sentir rei, da cabeça aos pés”, escreveu Nelson. Na final, o Brasil venceu a Suécia por 5 a 2 e conquistou o primeiro de seus cinco títulos mundiais. Pelé fez dois gols.
Em um deles, o Rei recebeu um passe que veio da ponta esquerda, dominou no peito, deu um chapéu no zagueiro, que ainda tentou cravar as chuteiras na coxa do Pelé e, sem deixar a bola cair chutou firme pra bola morrer nas redes. Naquele instante, Pelé pisava no mais alto posto do futebol pra dali nunca mais sair. Esse pedestal onde está o Rei é o mesmo Panteão onde habitam Beethoven e Mozart, Van Gogh e Picasso, Shakespeare e Camões, só pra ficar em alguns poucos nomes de expressão galáctica.
Toda comparação é sempre menor do que o mito. Contudo, talvez o único paralelo possível seja a vida em linha tênue que encara o trapezista. A técnica apurada, combinada com o improviso do equilibrista sobre um cabo de aço a metros e metros de altura, é capaz de deixar a plateia em suspenso, sem saber se o artista chegará ao final do percurso com vida. O trapezista que não despenca do alto realiza a travessia com maestria, porque vibra na mesma vibração da corda, quase fundindo-se ao cabo de aço. Pelé transitava além dessa perspicácia.
Os adversários perseguiam Pelé — alguns, inclusive com raiva —, mas não viam a bola. É que ele a escondia deles, mas como? A melhor pista é o verso do poeta Thiago de Mello: “Como ser se não sendo-o”. Pelé era a bola na sua forma mais eloquente, sinuosa e imprevisível, como o vento no alto de uma montanha, a driblar gregos e troianos até a derrota física, moral e transcendental. O improviso de Pelé, que deslizava sobre o gramado, sublime e imparável, deixando a plateia com o coração na boca e os olhos arregalados, assistindo-o marcar gols sem fim, de todas as formas (todas elas copiadas pelos craques que o sucedem), era sempre um golpe mortal aos adversários, que sucumbiam humilhados.
O goleiro, coitado, só reconhecia que a bola havia voltado a ser só um gomo de couro surrado quando buscava-a, desapontado, dentro da goleira — e foram mais de mil. Inerte e distante de Pelé, a bola era (e sempre será) só uma bola. Mas quando Pelé a conduzia pelo gramado, veloz, cheio de garra, ginga e improviso, ela encarnava em Pelé. Outro poeta, o Drummond, quando o Rei marcou o gol mil, imortalizou o feito em crônica: “O difícil, o extraordinário, não é fazer mil gols, como Pelé. É fazer um gol como Pelé”. E, pra fechar, outro mestre da crônica, Armando Nogueira, certa vez escreveu: “Pelé é tão perfeito que se não tivesse nascido gente, teria nascido bola”. Pois é, mas no fundo, seu Armando, o Pelé se tornou, sim, a bola. Pelé era a bola. E, a bola, nunca mais será Pelé.