Nunca tomei café. Sequer provei a bebida que é símbolo de um Brasil pra turista ver. Freud explica. Minha mãe aprecia café. Diariamente. E tem de ser bem quente. Nunca perguntei a ela, mas imagino que esse gosto tenha se intensificado por conta da profissão. Professora de Língua Portuguesa, os intervalos sempre foram regados a café. E dá-lhe cafeína pra manter o pique em sala de aula...
Enfim. Quando fui gerado e estava em desenvolvimento dentro do útero de minha mãe, curiosamente ela sentia enjoo sempre que tentava tomar café. Em resumo, mesmo no ventre eu consegui achar uma forma de impedir que a minha mãe tomasse café. Porque antes mesmo de ser considerado um ser humano eu já havia estabelecido que a bebida extraída desse grão torrado jamais faria parte da minha vida.
Durante nove meses frustrei um dos prazeres da vida da minha mãe. E registro aqui, de maneira formal, um expresso pedido de perdão por esse disparate. Pra surpresa de esquerdistas a patriotas, e até mesmo da turma do Centrão e dos isentões, jamais provei café. Nenhuma gota sequer. “Nem bala de café?”, questiona Bruno, meu colega sentado à direita. Nem mesmo bala. E assim seguirei dessa vida pra um outro plano astral, pro céu ou reencarnado em um novo ser que, antes mesmo de ser considerado humano, nascerá convicto de que o café nunca será consumido. Por todo o sempre.
Confesso, já tentei provar. Segurei a xícara pela aba, levantei e, bem perto da boca, o cheiro, que encanta a todos, embrulhou-me o estômago e desisti pra nunca mais tentar. Contudo, nem mesmo mergulhado em uma banheira de café provocaria em mim tamanha náusea quanto a reportagem que li no dia 20 de janeiro. No portal de notícias Sumaúma, Ana Maria Machado, Talita Bedinelli e Eliane Brum publicaram um texto duro de ler, mas urgente.
A reportagem abre assim: “A criança Yanomami já tinha vivido 1.095 dias, mas pesava o mesmo que um bebê que acabara de nascer. Três anos e 3,6 quilos. O número traduz o que uma série de fotografias recentes recebidas por Sumaúma mostram: corpos de crianças e velhos, com peles que recobrem apenas os ossos, tão fragilizados que mal parecem se equilibrar. Costelas que parecem perfurar os corpos minúsculos contrastam com barrigas enormes, povoadas por vermes”. Mais adiante, detalhavam o horror: “vermes que saem pela boca”.
E tem gente que me trata como uma aberração por não tomar café. Aberração é ver ser humano morrer por não ser considerado humano. Aberração é lançar um véu de invisibilidade diante da tragédia. Pior aberração ainda é negar vermífugo pra matar vermes, antiparasitários pra matar malária, ou ainda, analgésicos pra aplacar a dor por causa da dengue. De 2019 a 2022, segundo a Sumaúma “570 crianças com menos de 5 anos morreram no território Yanomami pelo que as estatísticas chamam de ‘mortes evitáveis’.
Não quero demover ninguém de tomar seu cafezinho. Mas, por curiosidade, fiz uma rápida pesquisa de preços. Com o dinheiro usado pra comprar meio quilo de café, daria pra adquirir cerca de dez comprimidos vermífugos. Ou ainda, comprar mais de 20 comprimidos analgésicos. E, pelo menos, uma caixa de seis comprimidos de medicamento pra combater a malária. Tudo é uma questão de prioridade.
O Brasil pra turista ver pode e deve continuar a celebrar o café. Contudo, é tristemente simbólico que sejamos reconhecidos mundo afora como o país que persegue, mata e invisibiliza o povo que já estava aqui antes de o Brasil nascer. Renato Russo, profético dos tempos sisudos, já havia cantado: “Quem me dera, ao menos uma vez / Que o mais simples fosse visto como o mais importante / Mas nos deram espelhos e vimos um mundo doente”.