O Carnaval é logo ali. Depois do quebra-pau, da apoteose no Planalto Central, vem aí a dança dos corpos suados salpicados de confete e purpurina. O hit desse ano bem que poderia ser E o mundo não se acabou, do genial Assis Valente, imortalizado na voz de Carmen Miranda, a portuguesa mais brasileira que existiu por aí. Bem que poderia, mas não será.
Dia desses morreu o Dinamite. Se foi cedo. Perdeu a partida da vida contra a morte por um triste gol de câncer. Aos 68 despediu-se em silêncio. Quisera o destino que Dinamite, o eterno ídolo vascaíno, o maior artilheiro do Brasileirão de todo sempre, sucumbisse justamente no dia em que Brasília foi tomada por um exército canarinho. Por força dos fatos, o craque Dinamite, o cara que entortava zagueiros de todos os tipos, de brucutus a pernas-de-pau, foi velado à sombra do quebra-pau em pleno Planalto Central. E o mundo não se acabou.
Inspirado numa estátua gigante (ainda maior do que era na visão de um guri de sete anos), me fantasiei de índio no Carnaval de 1984. A dita estátua ficava bem ao lado da porta de entrada da sede social do clube Recreio Guarany. A imagem era monumental, um indígena exibindo o corpo escultural, naquele estilo das esculturas greco-romanas. Além do cocar e de uma sunga justíssima, o indígena segurava um arco tensionado por uma flecha. Assim que entrei no clube, num desses bailes infantis de Carnaval, olhei a estátua de cima abaixo e me vi refletido nela. Meu peito estufado durou menos de um minuto.
Subindo os primeiros lances da escadaria de madeira me deparei com a realidade diante do espelho. De tão magro, era possível contar o número de costelas no meu peito e os braços finos e frágeis expunham ainda mais meu corpo franzino, o extremo oposto do monumental indígena. O assunto, vez ou outra, volta à cena nesses bate-papos em que, por intimidade, expomos nossas fraquezas e vergonhas. Foi traumático, porque nesse estranho baile de Carnaval, como se o mundo tivesse desabado nas minhas costas, passei o tempo me escondendo debaixo das mesas, como se fosse um zagueiro perna-de-pau, ridicularizado por mais um lance de maestria digno de craques como o Dinamite.
Assis Valente morreu em 10 de março de 1958, dias depois do Carnaval e meses antes de Pelé chorar como um guri por causa do primeiro título em Copas da Seleção Brasileira. Assis, que colocava todos a dançar com suas músicas, sucumbiu em dívidas, amargurado em sua derrocada financeira. Bebeu formicida com guaraná pra espantar o mal que lhe afligia. Em 1958, a Portela venceu o Carnaval com o samba-enredo Vultos e Efemérides do Brasil. A letra dizia assim: “Em 22 de abril de 1500 / Nosso gigante vi cair / Por diante com amor edificou / Essa grande pátria varonil”.Vem daí, será, esse lance de o “gigante acordou”? E afinal, agora ele dorme ou viajou?
A velha sede social do clube Guarany está lacrada. Onde andará a monumental escultura do indígena musculoso que me humilhou na infância? Talvez padecendo em meio ao pó e ao abandono. Desde aquele fatídico Carnaval alimento um freudiano trauma por essa festa pagã. Assim como Dinamite, que passou seus anos como jogador de futebol à sombra do Zico, o maior craque de sua geração, eu sigo à sombra daquela colossal escultura do indígena Guarany.
Dizem que o mundo se acabou pro Bolsonaro, pelo menos dentro das quatro linhas do campo político. Acho difícil. Se não acabou pro Lula, que ficou preso 580 dias, se não acabou pra mim, ridicularizado em pleno Carnaval, não será assim nem mesmo pro Bolsonaro. Daí pra saber quem será imortalizado à sombra de quem, só o curso da história poderá dizer. Algum palpite?