Vamos chamá-lo de Roberto. Mas poderia ser Adelar, Rubens, Rita, Margarida ou até Filomena. Aos 12 anos, inventou que seria piloto de carros de corrida. Talvez motivado pelo Ayrton Senna, que conduzia veloz sua McLaren atropelando um a um seus oponentes. Aos 15, dirigia o carro do pai, um velho Opala Comodoro daqueles com teto de vinil, azul metálico, lascado pelo tempo, talvez ano 77 ou 78.
– Opa, tudo bem?
– O senhor pode me deixar ali na Borges de Medeiros, esquina com a Bento.
– É na RBS?
– Isso, ali mesmo?
– Bah, tu não é o Mugnol?
– Sim.
– Então, sou o Roberto...
– Beto? Do Opalão?
– Sim... Bah, mas na real tu sabe que o Opalão era do meu pai...
– Pois é, me lembro...
– Eu não te disse que ia ser piloto de corrida? Virei piloto de corridas de táxi.
Eu ri. Ele gargalhou. Fiquei constrangido por ele. Talvez ele tenha percebido, porque silenciei, olhei pela janela lateral, vendo a cidade vazia, ainda às escuras.
Cansado e com sono reclamei de acordar cedo. Entrei no prédio pra trabalhar pensando que era melhor ter despertado naturalmente, sem despertador, dizendo eu te amo, capturando um livro do Caio F. pra ler na sacada à luz do sol. Daí lembrei do Beto, calei meu pensamento e fui trabalhar.
Meti os fones nos ouvidos e deixei rodar uma playlist qualquer. Depois dos tons cinzentos em desalento de Radiohead e Joy Divison, Jorge Drexler, reconfortante, cantou Tinta y Tiempo. Em livre tradução: “O que deixo por escrito / Não é esculpido em granito / eu só solto no vento / pressentimentos”. Daí lembrei do Beto do Opalão, agora taxista, e refleti sobre o poder da palavra e o peso da frustração.
E eu que fico sempre entre dois mundos, do ofício que me condiciona a perseguir a verdade a partir das realidades e, do ócio, na cadência da poesia, que não dá dinheiro e não serve pra nada, além de sublimar as pedras no caminho, né, Drummond? Quiçá nos torna santificados, né, Leminski?
Entre a realidade e a poesia, tem horas em que é preciso trancafiar-se dentro de si mesmo pra mergulhar dentro da ficção interior só pra teimar que o Manoel de Barros sempre tem razão: “Uso a palavra para compor meus silêncios. / Não gosto das palavras / fatigadas de informar”.
Informo que o Beto do Opalão disse que eu poderia contar a sua história, mas sem revelar seu nome verdadeiro, porque, do contrário, diria que é tudo mentira.
Fatigado, escrevo que o Beto morreu sentado vendo tevê, porque o coração não resistiu a uma dor de luto mal curada. Beto morreu a zero quilômetros por hora, sem emoção nenhuma. Essa não é a história do Senna, é a história do Beto do Opalão.