Mais um jovem tomba diante da violência de mais um disparo de revólver. Mil teorias de como acabar de vez com essa guerra. Na praça do poeta Dante, um senhor de terno cinza, camisa branca engomada e chapéu cinzento escuro observa, sentado de pernas cruzadas, a urgência de quem tem pressa. A fúria do mundo nasceu antes da palavra fúria. E também a angústia, a dor e o horror. Inominável, inclassificável, indecifrável o choro em prantos de uma mãe enterrando o filho.
E o velho, ali sentado.
Entre anjos e demônios, Dante, o busto da praça, foi cunhado com a expressão que sintetiza tristeza, desalento e resignação. O escultor Eugenio Belloto, no fundo, sabe que os poetas têm ombros que suportam o mundo. Porém, verso a verso, estrofe depois de estrofe, livro sobre livro, bibliotecas a perder de vista, tudo isso ratifica a inutilidade da palavra contra a violência pré-histórica, da ira seguida de morte (não importa o motivo), aqui numa quebrada em Caxias do Sul, na fronteira da Ucrânia com a Rússia, ou em sinagogas e mesquitas.
Apesar da guerra sem fronteiras, das balas perdidas, dos mísseis teleguiados, dos drones que destroem alvos léguas distantes, Drummond, um desesperado apaixonado pela palavra, implacável, desfere seus versos, numa tentativa gloriosa (ou estúpida para alguns), para quem sabe aplacar um pouco a nossa dor, tentando limpar o sangue derramado com, pasme, poesia.
“Pouco importa venha a velhice, que é a velhice? / Teus ombros suportam o mundo / e ele não pesa mais que a mão de uma criança”.
Daí, lendo Borges, aquele escritor que sempre me pareceu velho, talvez por isso familiar, como se fosse o tio Ivo, lendo a Zero Hora numa manhã de sábado, em Areias Brancas. Lendo Borges, sou afligido por mais um disparo contra meu peito. Um disparo que provoca certa euforia, confesso. Não faz derramar uma gota só de sangue. Como pode um curto trecho de uma certa divagação acerca do “enigma da poesia”, gerar tamanha iluminação?
“Acho que Emerson escreveu algures que uma biblioteca é uma espécie de caverna mágica cheia de mortos. E esses mortos podem renascer, podem voltar à vida quando abrimos as suas páginas”.
Entorpecido pela “palavra”, que comecei dizendo, nasceu beeeeem depois do horror das violências todas, voltei ao poema Os ombros suportam o mundo e foi como se pudesse ver Drummond e Borges em um diálogo profundo (para alguns inútil) como se esquadrinhassem a vida, apesar das tessituras dissonantes, em um traço vigoroso e, repetindo, iluminado.
“As guerras, as fomes, as discussões dentro dos edifícios / provam apenas que a vida prossegue / e nem todos se libertaram ainda”.
Reabri o livro de Borges, que me devolveu (ou foi para o Drummond) essa sentença:
“Voltamos à poesia; voltamos à vida. E a vida é, tenho a certeza, feita de poesia. A poesia não nos é alheia – a poesia espreita, como veremos, a cada esquina. Pode saltar-nos em cima a qualquer momento”.
A poesia não apaga a morte do guri que estava no lugar errado na hora errada. O velho na praça do poeta pode nunca ter lido Dante, talvez por isso estivesse de costas para o seu busto. Mas o velho vê a dor da morte e, mesmo sem poesia, veste terno e camisa engomada – diariamente. Porque, até agora, tem vencido a morte, que assim como a poesia, “pode saltar-nos em cima a qualquer momento”.