* Crônica originalmente publicada em 11 de julho de 2018.
Esta história de a cidade onde moro ter o técnico da Seleção não é a primeira vez. Já contei aqui. Quando eu era criança, a Seleção era treinada por João Saldanha, natural de Alegrete, como eu. Essa origem era um orgulho para os alegretenses. Já é para os caxienses com Tite, imagine-se então para uma cidade distante no oeste longínquo gaúcho. O comunista Saldanha ganhou todas nas Eliminatórias em tempos de ditadura militar, mas não o deixaram ir à Copa, como era previsível. O resto é história e alguma lenda. Para os alegretenses, ficou aquele tempo de peito inflado. O técnico era nosso.
Logo depois, veio a Copa. Era a Copa de 70, aquela dos "90 milhões em ação", trilha sonora que anunciava os jogos do Brasil na televisão. Criança ainda, não via contradição naquela marcha, que era impossível deixar de cantarolar. Mais tarde, fiquei sabendo da história toda – da marcha, da Copa, daquele momento histórico. Mas foi a primeira Copa da tevê, em preto e branco. Meu pai havia saído comigo pela mão, semanas antes, para comprar uma para ver os jogos. Comprou um caixote cheio de válvulas, da marca Semp, que ainda não era Toshiba. E foi nela que testemunhei minha primeira Copa.
Domingo agora terá outra final. Naquele ano, teve Brasil e Itália, e um episódio singular. O sinal da tevê chegava a Alegrete, a 500 quilômetros de Porto Alegre. Mas não chegava até Uruguaiana, 134 quilômetros adiante, pela BR-290, na fronteira com a Argentina. Era um improvável canal de tevê, a TV Piratini, retransmissora da Rede Tupi, contra as centenas de canais, câmeras, plataformas e interatividades de hoje em dia. A desvantagem para os uruguaianenses era tamanha. Eles não tinham sinal de tevê.
Foi então que se viu o que nunca mais se verá: caravanas de Uruguaiana se precipitaram pela 290 naquele domingo cinzento até Alegrete para ver a final da Copa. No início da tarde, a imagem da tevê era só chuvisco. Apreensão total. Com cinco minutos de jogo, entrou o sinal. Então, todos puderam ver os 4 a 1. Uma integração ampla entre moradores de duas cidades onde até hoje prevalece a rivalidade nos moldes de Caxias e Bento. Mas, naquela tarde, torceram juntos. Minha casa recebeu uma leva de parentes, que assistiram ao jogo, comemoraram conosco, fizeram "passeata" _ naquele tempo, não se chamava "carreata" _ e voltaram mais felizes para Uruguaiana.
As Copas, a cada quatro anos, funcionam como marco cronológico na existência e na memória das pessoas.
E ficam as histórias da Copa. Como a dos uruguaianenses sem tevê, que invadiram Alegrete para ver a final contra a Itália.
* Durante toda a Copa do Mundo, o colunista Ciro Fabres publicará em GZH Histórias de Copa, uma coletânea de crônicas e histórias embaladas em torno das Copas do Mundo, desde a primeira delas acompanhada pelo colunista, a de 1970, no México. Com a Copa do Catar, são 14 Copas.