A Copa de 70, além de tudo o que proporcionou em gols e lances geniais, ofereceu-nos a maior defesa de um goleiro em todos os tempos. Foi uma Copa abençoada pelos deuses. Claro, essa consideração sobre ter sido a maior defesa já feita por um goleiro é absolutamente subjetiva e pessoal. Certamente haverá uma série de outras defesas mundo afora, merecedoras de serem consideradas. Mas essa avaliação é acompanhada pela opinião de muita gente que viu Gordon Banks defender uma cabeceada de Pelé, de cima para baixo, no jogo entre Brasil e Inglaterra na Copa do México, vencido pelo Brasil pelo escasso placar de 1 a 0, o jogo mais difícil daquela Copa.Tornou-se, talvez, a mais famosa defesa de um goleiro, sendo considerada a "defesa do século" – século passado, naturalmente.
No caso dessa defesa, é preciso considerar o jogo, o evento, o palco, o ambiente. Jogo de Copa do Mundo. É preciso considerar os protagonistas. Gordon Banks e ninguém menos do que Pelé. Gordon Banks é uma lenda até hoje. O jogo foi dificílimo. Ainda no primeiro tempo, Carlos Alberto lançou Jairzinho, que cruzou. Pelé fez tudo certo, foi lá no alto, com impulsão, e cabeceou para baixo, como manda o manual. Mas encontrou Banks pela frente. A defesa foi plástica, o goleiro inglês teve de buscar a bola no chão, com grande técnica, e mandou-a para escanteio.
Há lances que a gente vê pela tevê e só depois de um certo tempo eles se tornam famosos. Há outro que vi em uma transmissão ao vivo – mas esse não foi jogo de Copa. Ah, as transmissões de jogos ao vivo pela tevê, naquela época de tevê semiartesanal! Diferentemente de hoje, não era todo dia que um jogo era transmitido ao vivo. Lembro de estar sozinho em pé no meio da sala de casa, no fim de tarde de um domingo. Havia parado quase que por acaso na frente da tevê, disponível, esquecida ligada, que transmitia um certo Fla-Flu, no fim dos anos 60. Um jogador do Flamengo, lá pelos 30 do segundo tempo, pegou a bola no meio do campo e foi deixando para trás, um a um, de forma vertical, em linha reta para o gol, todos os defensores do Fluminense. Na hora, tive a intuição: golaço! Logo depois, aquele lance transformou-se em música de Jorge Benjor, que naquele tempo se chamava só Jorge Ben. O nome da música: Fio Maravilha. Um lance imortalizado, e eu, uma criança ainda, testemunhei tudo ali pela tevê, um flagrante que entrou para a história do futebol.
Como esquecer aquele lance e a transmissão ao vivo? Revisito aquela sala e aquele momento até hoje, lembro com detalhes da tevê em preto e branco e dos chamados "chuviscos", pois a imagem não tinha a nitidez de hoje. A transmissão não tinha a qualidade da imagem, mas registrou para a posteridade. Com a defesa de Gordon Banks, foi a mesma coisa. Não se tornou música, mas ficou imortalizada, reconhecida até hoje, 52 anos depois. E assistida em tempo real, sem que se imaginasse o alcance para a história. Era a mágica da transmissão ao vivo, na virada dos anos 60 para os anos 70. E quando falo em "tevê semiartesanal", a defesa de Gordon Banks foi captada por apenas uma única câmera. Foi o suficiente para entrar para a história. O que seria daquela defesa hoje, mostrada por não sei quantos equipamentos, de todos os ângulos possíveis? E compartilhada infinitamente pelas redes sociais? Essas possibilidades de agora só valorizam os esforços da tevê dos primeiros tempos.
Havia uma única, solitária e abençoada câmera para captar a defesa de Gordon Banks. Ela imortalizou uma defesa mágica, que hoje faz parte, merecidamente, da história do futebol.
* Durante toda a Copa do Mundo, o colunista Ciro Fabres publicará em GZH Histórias de Copa, uma coletânea de crônicas e histórias embaladas em torno das Copas do Mundo, desde a primeira delas acompanhada pelo colunista, a de 1970, no México. Com a Copa do Qatar, são 14 Copas.