Tempos estranhos, insiste há algum tempo o ministro do STF Marco Aurélio Mello. Tempos estranhos estes, mas que nos definem como sociedade. Uma sociedade complexa, diversa, plural, mas que tem um somatório de forças e oferece uma resultante, uma síntese que adquire materialidade em um ambiente que o ministro define de forma algo instigante: tempos estranhos.
Temos aí nas ruas, desde março, uma pandemia de coronavírus, que foi chamada de covid-19. Lembra dela? É bom reavivar a memória. Há algum tempo decidimos, como demonstram os sinais exteriores de nossa movimentação, que o bicho não é tão feio assim. A pandemia, porém, insiste em não recuar. Surpresa? Estamos, ao que parece, muito satisfeitos com uma estabilidade em altura equivalente à dos Campos de Cima da Serra. Um platô, é o que se diz. Estamos em momento de estabilidade, ou de pequena queda dos índices de contágio, de ocupação de UTIs, de casos fatais, que logo voltam a se elevar, e esse cenário parece ter nossa aceitação como favorável, pois passamos a nos sentir mais à vontade para nos movimentarmos dentro dele. E assim temos circulado, com pico de média móvel ao redor de mil mortes diárias no país, perto de 40 mil contágios diários, com sete mortes no Nordeste Gaúcho em três dias, quatro delas em Caxias, perto de 500 vidas perdidas na região, aqui ao nosso redor, caminhando a passos largos no rumo das 150 mil no país.
São motivos para alguma tranquilidade, talvez assim entendamos ao observar o cenário, pois nos sentimos cada vez mais à vontade para liberar esportes coletivos, bares, para organizar festas clandestinas e acorrer para a emblemática avalanche dos sem-máscara nas praias. Se ainda houvesse protocolo observado com rigor, alguma reverência à vida, até mesmo à vida de familiares e dos mais próximos... Mas que nada! Pretendemos cancelar a pandemia, decretar seu fim. Só falta combinar com o corona... Tempos estranhos, tem razão o ministro. Tempos de desrespeito e desvalorização da vida, essa é a tradução objetiva. Estranho, não? Mas uma tradução precisa.
De algum lugar vem o contágio. De onde vem mesmo o contágio? Ah, é da circulação de pessoas. E as pessoas circulam cada vez mais, estimuladas pelas administrações e governos, que liberam, e liberam, e liberam... Algo não fecha nesta equação. Para quem já se sente à vontade na pandemia, e já pouco liga pra ela, é preciso relembrar que as consequências ainda são dramáticas, expressas em histórias de vida pelo site Inumeráveis, que mostra quem foram essas pessoas cujas vidas se perderam antes do tempo. Pois bem, o site Inumeráveis (inumeraveis.com.br) merece e precisa de um pedestal, uma visibilidade que não lhe é dada. Ele mostra a consequência da pandemia, para quem não se liga nisso. E é tanta gente que não se liga, como se vê nas praias repletas.
Tempos muito estranhos, em que a vida não é valorizada.