Já pensou ter alguém próximo pronto para te delatar ao governo com acusações de alguma ação considerada arbitrariamente como transgressora? Pois foi o que aconteceu com a alemã Vera Lengsfeld.
Durante mais de uma década, seu marido — o poeta e matemático dinamarquês Knud Wollenberger — relatou à Stasi (a famigerada polícia secreta da Alemanha Oriental) cada passo que sua esposa, e mãe de seus dois filhos, dava. O objetivo era espionar um grupo de alemães convertidos ao cristianismo nos anos 1980, em plena Guerra Fria, enquanto parte da atual Alemanha ainda se encontrava atrás da Cortina de Ferro.
Vera só soube quem realmente seu marido era em 1992 quando, após a Queda do Muro de Berlim e da Reunificação das duas Alemanhas, os arquivos da Stasi foram abertos ao público. E lá estava o nome de Knud Wollenberger, informante do regime, em centenas de páginas com denúncias sobre sua mulher.
Um dos “crimes” cometidos por Vera Lengsfeld foi portar um cartaz contendo o texto do artigo 27 da Constituição da Alemanha Oriental: “Todo cidadão tem o direito de expressar suas opiniões livremente e abertamente”. Por causa disso (e delatada sem saber pelo próprio pai de seus filhos) foi presa em 1988 durante uma manifestação de cristãos.
A capilaridade da Stasi era algo assombroso: maridos delatavam esposas, alunos delatavam professores, professores delatavam colegas, vizinhos espionavam quem morava no mesmo prédio. O Estado mantinha uma vigilância constante porque contava com a obediência servil e a cegueira ideológica de muitos cidadãos.
Nenhum regime autocrático sobrevive por décadas se não encontra apoio em parte de sua população. Mas o que leva alguém a prejudicar familiares e amigos em nome do sistema? Que tipo de pessoa coloca acima do amor a uma esposa ou o carinho por um mestre sua devoção a uma entidade governamental?
Não estamos falando aqui em denunciar criminosos violentos e perigosos que matam, assaltam e machucam outros cidadãos: estamos falando de indivíduos sufocados e oprimidos por leis criadas não para benefício da sociedade, mas para um projeto de perpetuação de um governo e de um regime. E cada membro da Stasi, cada informante, justificava suas ações totalmente condenáveis da seguinte forma: estamos cumprindo a lei.
Fico me perguntando a motivação para ser tão subserviente a um governo: seria por status? Seria por dinheiro? Ou realmente estavam completamente fanatizados por um discurso que preenchia seu vazio existencial?
Fatos são mais significativos e indeléveis do que narrativas deturpadas por contorcionismos ideológicos de toda sorte. Muitos professores de História hoje simplesmente nem tocam no assunto, fazem de conta que o comunismo e o socialismo durante a Guerra Fria só geraram igualdade e bonança aos cidadãos que viviam sob o regime. Mas precisamos falar sobre a Stasi e seus horrores.
As testemunhas oculares, como Vera Lengsfeld, ainda estão aqui para contar. Temo pelo dia em que não teremos mais as testemunhas e as narrativas vão substituir os fatos.
[Este texto não é só sobre a Stasi]