Queria ser poética, mas impossível quando o assunto é trânsito. O que está acontecendo? O sinal vermelho perdeu o significado. Motoristas cruzam o sinal de pare sem nenhum pudor. O pisca então não serve para nada há muito tempo. É preciso andar com uma bola de cristal no banco ao lado ou recorrer a uma cartomante especialista em trânsito para que ajude a adivinhar para qual lado o motorista da frente irá dobrar. Em dias de chuva a situação fica ainda mais complicada. Uma mistura de pessoas desafiando a falta de visibilidade, acelerando, buzinando e de faróis desligados, rivalizando com a paciência de quem percebe o perigo, diminui a velocidade e reza para não bater nem ser batido debaixo do mau tempo. Aliás, o trânsito nunca teve tanta gente rezando antes de sair de casa. Dias atrás, quando o trânsito ia lento, fiquei observando um número considerável de terços pendurados no espelho retrovisor. O meu, inclusive, tem um.
Fico pensando o que quer dizer esse comportamento infrator que se expõe tão sem reservas quando as pessoas estão no trânsito. Haveria a fantasia de uma invisibilidade e portanto a possibilidade de circular sem a máscara civilizatória, tão fundamental para se viver em sociedade? Seria uma onipotência infantil de achar-se dono da rua e portanto livre para agir sem educação? Seria o trânsito esse espaço mais animalesco em que determinadas pessoas se sentem mais corajosas para mostrarem seu lado arrogante sem medo de julgamentos? Seria um problema do sistema que dá carteira de motorista a pessoas disfuncionais? Seria a falta de empenho político para se articular, de fato, uma campanha sobre o quanto o trânsito mata? Seria um problema de gênero, uma vez que homens se acidentam, matam e morrem muito mais? Há um velho discurso de que mulheres não dirigem bem, mas não é bem isso que os números apresentam. E contra os fatos não há argumentos. Seria a falta de coibição do uso de álcool para quem dirige? Seria a pressa, a falta de tempo, a raiva de qualquer coisa que fizesse a criatura se transformar em inconsequente enquanto dirige? O uso do celular no trânsito é, sem dúvida, um dos fatores que gera caos e acidentes.
Não quero ser o superego de ninguém, deus me livre, mas às vezes, por deus, tenho vontade de baixar o vidro do carro e gritar: liga o pisca. O problema desse comportamento arriscado no trânsito se transforma em questão social. Se amplia para além do indivíduo. Ou seja, quando se está no trânsito é preciso lembrar-se que você não é o único a dirigir, há muitos outros juntos e o comportamento de um pode colocar em risco a vida de muitos.
Mas olhar para isso a partir da demanda que se apresenta é tentar apagar o fogo com um balde apenas. Há a necessidade de um entendimento mais profundo do sujeito e de sua capacidade de saber ou não lidar com os estímulos, interpretar o que chega pelo exterior e qual será o destino da pulsão. Há uma necessidade urgente de revisitarmos a boa educação, resgatar e ampliar nossa capacidade de frustração, abrir mão da falsa onipotência e voltarmos a ser gente.