Atravessar. Travessia. Percorrer um caminho que leva de um lado a outro. Pode ser uma rua. Pode ser uma vida. Atravessar é algo que fazemos o tempo todo, mas há tempos em que a travessia parece maior. A vida às vezes tem parecência com o mar, noutras com o deserto. Nos aguamos de amor ou dor, nos desertificamos pela falta de algo. De todo modo ela é sempre única, singular e solitária. Nem sempre estamos prontos para atravessar o que quer que seja. Não tem jeito. Somos tomados de surpresa. Não sabemos quanto tempo dura a travessia (im)posta. Nem sabemos como sairemos dela. No entanto, é preciso continuar a jornada. Somos uma espécie de nômades dos afetos. Durante o dia atravessamos vários deles. Vamos da saudade à raiva, da tristeza ao sorriso. Parece que balançamos. De certa forma, sim. Estamos um pouco cá, outro lá. Às vezes mais perto do princípio, noutras mais longe. Somos cambiantes. Oscilamos. Variamos.
Atravessamos os anos, o casamento, a perda do emprego, a morte de alguém amado. Atravessamos os dias, os minutos, as estações. Atravessamos a pedra maciça do silêncio e o miolo macio do vazio. Nessas horas gosto de me deixar ser atravessada pelo sol. Uns minutos ali, de olhos fechados e algo se renova. É claro que não vai durar para sempre, nada dura para sempre, muito menos nós. Mas ajuda naquele átimo de tempo em que ainda sei quem sou e o que estou atravessando.
Às vezes para entender do que se trata a travessia que estamos realizando, é preciso afastar-se um pouco. Ver exige distância. Colocar-se distante do que atravessamos parece difícil, mas é essencial. Assim, de quando em quando, precisamos nos afastar de nós mesmos, porque ser sempre quem se é, é muito pesado e encobridor. Abrir mão de si, ajuda a observar o caminho que trilhamos até aqui. É uma espécie de desaprendizagem de si mesmo. Afastar-se para reconhecer-se. Às vezes temos certezas de nós demais. Achamos que nos conhecemos, que somos assim e assim seremos sempre. Uma grande ilusão. Volta e meia escuto: mas o que foi que eu fiz para estar vivendo isso? Qual parte de mim decidiu ir por esse caminho? Quando escuto isso lembro de um verso de T.S. Eliot, “e o fim de todas as nossas explorações será chegar ao lugar de onde partimos e conhecê-lo então pela primeira vez”.
Os caminhos são circulares. Vão e voltam sempre ao princípio. Sim, o lugar da infância. Atravessamos uma vida inteira para nos encontrarmos outra vez com quem um dia já fomos. E, por inúmeras razões esquecemos ou sufocamos. Mas em algum momento nos damos conta da própria busca. Pode ser uma angústia, um desconforto, um desconhecido. Então o familiar abre uma rachadura e o pensamento tropeça. Nossos supostos saberes entram em conflito. Descobrimos que crescemos e construímos uma vida sobre andaimes. A vida é uma casa mal acabada.
Eis a travessia. Adélia Prado diz que a palavra é disfarce de coisa mais grave. Se comunicamos, entendemos. Atravessar vem antes, quando ser e não ser ainda são a mesma coisa.