Volmar Santos é uma figura conhecida nas ruas de Passo Fundo. Colunista social há mais de quatro décadas, coleciona histórias: a mais famosa delas é a fundação da Coligay, reconhecida como a primeira torcida LGBT+ do Brasil. Tamanho sucesso rendeu a publicação de dois livros: Coligay – Tricolor e de Todas as Cores, de Léo Gerchmann, e Plumas, Arquibancadas e Paetês, de Luiza Aguiar dos Anjos, ambos baseados na história da torcida fundada em meio à ditadura militar, resistindo ao preconceito.
Mesmo tendo duração curta, de apenas seis anos, a Coligay mudou paradigmas e comportamentos nos estádios, com um papel crucial na história das pessoas LGBT+. Na última terça-feira (10), data da fundação da Coligay, o Grêmio publicou uma homenagem à torcida em suas redes sociais.
Torcedor do Grêmio, Volmar Santos completa 75 anos no próximo dia 30 de abril e contou sobre a ideia da criação da torcida e sobre sua trajetória de vida, que se traduz na união de artes, música e letras.
— Falar da Coligay é falar sobre personagens barulhentas, loucas, vestidas de bailarinas, pulando e torcendo dentro do estádio. Imagine isso em plena década de 1970. Tem muita história para contar. A Coligay foi um sucesso. Durou de 1977 a 1983, o suficiente para marcar uma vida inteira.
Santos continua sendo uma figura conhecida da torcida gremista e é bem recebido na Arena.
— Sempre me senti em casa. Recentemente me convidaram para assistir a um jogo e recebi inúmeras homenagens.
Como tudo começou
Santos nasceu no dia 30 de abril de 1948, em Passo Fundo. Teve cinco irmãos, três ainda vivos.
Inquieto por natureza, como ele mesmo diz, descobriu a veia artística para eventos e para a música desde muito cedo. Quando garoto cantava no programa Clube do Titio, na Rádio Passo Fundo, sob comando da professora Mercedes e do maestro Jaques.
Participou de festivais na cidade, vencendo alguns. Aos 18 anos, integrou o conjunto Enoé e Orquestra, onde foi crooner (cantor romântico) do conjunto, que animava bailes na época.
Sempre em busca de novidades, optou por ir morar em Porto Alegre, depois que foi convidado a participar em todos os finais de semana do programa Almoço com Sucesso, na TV Piratini, representando Passo Fundo. No mesmo período fez participações no Show do Gordo, na TV Gaúcha.
— Em 1968, aos 20 anos, fui vencedor do concurso A mais bela voz do Rio Grande, da TV Gaúcha, cantando músicas românticas. Cheguei a cantar no Turis Clube de Porto Alegre, um ícone.
A inquietude o incomodava e a vontade de ir em busca do novo mais uma vez prevaleceu. Um ano depois, decidiu ir embora para São Paulo.
— Os primeiros meses foram bem, mas depois acabei dormindo na praça, até que consegui um emprego numa empresa de televisão. Trabalhava no balcão e assistia os programas do Bolinha, Chacrinha e Silvio Santos nos finais de semana. Eu nunca sosseguei. Me inscrevi e fui escolhido para me apresentar no programa do Silvio Santos no domingo à tarde. Fui tão bem que virei "galã do Silvio Santos", como chamavam os meninos bonitos que eram escolhidos para fazer shows fora de SP.
Santos participou do programa do Bolinha, na TV Bandeirantes, do Chacrinha, na TV Tupi, e foi contratado por um empresário para fazer show na boate La Honde e no Clube de Paris.
— Eu ainda não estava satisfeito, queria muito mais. Queria gravar um disco, mas a concorrência era grande. Nesse período, passei a participar todas as noites do programa da Rádio Nacional e por intermédio de conhecidos descobri que o dono da gravadora Chantecler era o Teixeirinha. Pensei na hora: ele é de Passo Fundo e eu também. Pode me ajudar a gravar o disco. Voltei a Porto Alegre para procurar o Teixeirinha, mas ele não me atendeu, mesmo assim me entregaram um cartão de visitas com indicação do grande músico que se considerava passo-fundense. Eu não ia desistir e voltei para São Paulo com o cartão de Teixeirinha e com a cabeça feita que eu ia gravar o tal do disco. Na gravadora, quando disse que tinha um cartão me indicando ao responsável eu consegui a atenção que precisava. Assim foi aprovada a gravação do disco, só precisava da música.
Neste períod0, Santos voltou para Passo Fundo visitar a família e decide pedir ajuda ao então prefeito Edu Villa de Azambuja, coronel do Exército.
— Ele me recebeu. Era fã de música, tocava órgão em bares e boates nas noites passo-fundenses. Ele havia feito o Tango Passo Fundo, em parceria com Donato Raciatti, de Buenos Aires. Edu sugeriu que eu gravasse em português o Tango. Gravei em 1973 a canção em um lado de um compacto e do outro gravei a música O que será de você, que recebi como sugestão na gravadora. Com o compacto em mãos, fiz prontidão nas portas das rádios paulistas e consegui uma oportunidade na Rádio Nacional. Depois disso, conquistei espaço, segui fazendo shows, a partir dali como cantor com disco gravado e tudo.
Ele recebeu uma proposta para cantar em bares de Montevidéu por 30 dias. Recebeu a primeira quinzena e não viu mais o contratante.
— Escrevi uma carta para minha irmã pedindo para ela mandar dinheiro para eu pode pegar um ônibus e ir embora. Nem tudo foi fácil.
Santos conseguiu comprar dois apartamentos em São Paulo com o dinheiro que ganhou cantando na noite paulista. Mas, no final da década de 1970, decidiu retornar a Porto Alegre para cantar.
— Uma noite, um amigo me levou a uma boate gay, chamada Flowers, estava lotada. Era o sucesso da noite de Porto Alegre. Eu amei aquilo. Fiz amizade com o dono e acabei sendo convidado para gerenciar uma das boates que ele comandava. Era um novo ramo na minha vida, e como gostava de coisas novas, prontamente aceitei. Numa dessas noites, passei pela Avenida João Pessoa e no número 1.281 enxerguei a boate Coliseu, que era para casais. Tinha um pingo de gente. Pensei na hora: que lugar lindo, mas fraco de movimento. Falei com o dono, seu Ferreira. Sugeri a ele abrir uma boate gay. Isso não era muito comum na década de 70, havia muito preconceito, nem todo mundo era favorável, mas, negociando com ele e seu filho, ambos acabaram aceitando a ideia. Preparei uma grande reinauguração da boate, não sabia se daria certo. Coloquei anúncio em TV e rádio. A boate superlotou. Todos os presentes ficaram encantados. Era um lugar lindo, dedicado ao público gay e se tornou uma grande casa da noite porto-alegrense.
Alguns meses depois os proprietários cansaram da badalação e Santos decidiu comprar a boate Coliseu com o dinheiro da venda dos apartamentos de São Paulo que tinha guardado.
— Eu me tornei dono da Coliseu. Então o meu concorrente, dono da Flowers, promoveu o Miss Rio Grande Do Sul Travesti e foi um sucesso. Eu não podia ficar para trás e na Coliseu promovi o Miss Brasil Travesti. Convidei travestis de todo o país, desde Rogéria, Valéria, várias outras. Tomamos conta da noite gay da capital.
Da Coliseu à Coligay
Amante do futebol e torcedor do Grêmio, Volmar foi assistir a um jogo e achou fraca a torcida em geral.
— Saí do campo pensando em montar uma torcida organizada, mas eu não conhecia muita gente em Porto Alegre. Mesmo assim pensei naquele mesmo dia. Podia se chamar Coligay, Coli, de Coliseu, e gay do público mesmo. No dia 10 de abril de 1977 fomos para o campo no jogo Grêmio e Associação Santa Cruz, pelo Campeonato Gaúcho. Ninguém entendia nada de futebol, mas fiz o pessoal criar amor pelo Grêmio. Foi um escândalo, se vestiam de bailarina, fiz camisetas com o nome do Grêmio, foi um sucesso, tinha danças e excentricidades. Tudo o que amamos!
Ele conta que a reação dos demais torcedores não foi tão boa. A Brigada Militar precisou acalmar os ânimos.
— Quando acabou o jogo corremos embora, mas ficou para a história, foi notícia o tempo inteiro. E depois disso foi só alegria. A Coligay ia onde o Grêmio estava. Tinha até garçom a bordo do ônibus para servir os torcedores. Começamos com uns 60 sócios e chegamos a quase 200. Fui audacioso. Hoje eu penso: que loucura que eu fiz!
O retorno a Passo Fundo e o fim da Coligay
No auge da Coligay, a mãe de Volmar ficou doente e a família o chamou para ajudar nos cuidados.
— Eu voltei para cuidar dela. Deixei um dos membros responsáveis por mobilizar a torcida. Infelizmente, nem todos vão atrás de patrocínio, organização e tudo o que precisa para um grupo dar certo. No mesmo ano que voltei para Passo Fundo, em 1984, a Coligay teve fim. Acabei ficando na cidade e não me arrependo nunca. A volta foi difícil porque era quieto, silencioso, diferente. Fui obrigado a me acostumar porque vim para cuidar da minha mãe, que sempre esteve acima de qualquer coisa.
O fundador da primeira torcida gay do Brasil terminou o antigo segundo grau. Foi eleito presidente do Grêmio Estudantil do colégio estadual EENAV por três anos. Nesse meio tempo, promoveu concursos como o Senhorita EENAV e Rainha EENAV, reunindo milhares de pessoas nos clubes da cidade. Acabou sendo contratado para ser diretor social dos principais clubes de Passo Fundo.
Com pouco mais de 20 anos, passou a cursar Letras na Universidade de Passo Fundo (UPF).
— Eu fiz muitos bailes de Carnaval e fui convidado para ser presidente da Escola de Samba Bom Sucesso, no bairro Boqueirão. De um galpão velho, consegui transformar a sede da escola em um lugar novo e com estrutura. Eu consegui juntar grandes patrocínios. Infelizmente, a escola terminou.
Santos chegou a ser presidente da Liga Passo-fundense das Escolas de Samba e seguiu sempre na noite, em festas, carnavais, títulos. O movimento sempre fez parte de sua rotina, em qualquer lugar que estivesse.
Hoje ele atua como colunista social de jornais da cidade e há 40 anos realiza dois eventos: Destaques e Personalidades do RS, onde premia pessoas que se destacaram em áreas distintas. Ainda em 2023, Santos pretende fazer uma edição das premiações no Salão de Festas da Arena do Grêmio, sua segunda casa.
Aos 75 anos, que serão completados no próximo dia 30 de abril, ele sorri quando conta as tantas histórias vividas em um caminho que considera de coragem e audácia. A homossexualidade ainda é tabu, principalmente dentro dos estádios.
GZH Passo Fundo
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