Começou com alguns torcedores. Ainda poucos. Mas barulhentos, festivos, dançantes. Suficientes para colorir as arquibancadas do Estádio Olímpico e atrair olhares curiosos naquela tarde de 10 de abril de 1977, na qual Ancheta e Eurico marcaram os gols da vitória do Grêmio por 2 a 1 sobre a Associação Santa Cruz, pelo Campeonato Gaúcho.
Assim nascia, há 45 anos, a Coligay. Uma ideia quase despretensiosa: torcer pelo Grêmio de um jeito diferente, mais animado, de forma incondicional. Começou com alguns torcedores. Virou uma das páginas mais emblemáticas da história do clube — e do futebol brasileiro.
Uma torcida pioneira, a única organizada identificada como homossexual (muito antes da sigla LGBT+ surgir) a frequentar um estádio de futebol. Uma torcida revolucionária, que combateu a homofobia (muito antes da palavra surgir nos dicionários) em plena Ditadura Militar. Ou como registra a Zero Hora de 26 de setembro daquele ano: "Começava uma nova afronta ao machismo gaúcho".
— Na época, eu não tinha a noção. Mas hoje, tenho noção de que é algo inédito. Vai ficar para o resto da vida na história do Grêmio — conta Volmar Santos, 74 anos, líder e fundador da Coligay.
Uma história criada a partir da inquietação de Volmar. Gremista assíduo no Estádio Olímpico, o cantor e empresário recém havia voltado de uma temporada em São Paulo. Em um dos tantos jogos, saiu frustrado das arquibancadas com a falta de animação da torcida.
— Me veio a ideia de formar uma torcida organizada — recorda.
Dito e feito. No número 1.281 da Avenida João Pessoa, Volmar comandava a boate Coliseu, primeiro como gerente e depois como dono. O estabelecimento deu nome e virou ponto de encontro da Coligay. Dali, os "coliboys" seguiam à risca o hino do clube: percorriam a pé — às vezes de ressaca — os 2 quilômetros até o Estádio Olímpico.
— Quando chegamos lá, ninguém entendeu nada — diz, aos risos, Volmar.
Em sua estreia, a Coligay já ensaiava as primeiras coreografias e cânticos que mais tarde arrancavam risadas de jogadores e dos demais torcedores. Baltazar, o Artilheiro de Deus, ganhou até música personalizada quando entrava em campo: "Vamos todas para o altar, que chegou o Baltazar".
Era um sucesso, um suspiro colorido em tempos de opressão. O grupo que começou com algumas dezenas de torcedores chegou a ter 200 integrantes. Todos reluzentes em trajes de paetê, calças justas e túnicas nas cores do clube. A charanga ditava o ritmo de um balé performado pelas coreografias e bandeirões que tremulavam no Olímpico.
E também nos estádios do Interior e até no Beira-Rio. Volmar Santos garante que os torcedores iam a campo para ver (e aplaudir) as performances da Coligay.
Na época, eu não tinha a noção. Mas hoje, tenho noção de que é algo inédito. Ficou na história e vai ficar para o resto da vida na história do Grêmio
VOLMAR SANTOS
Criador da Coiligay
Mas, no início, foi preciso soterrar o preconceito. Integrantes do Departamento Eurico Lara, a torcida oficial, espalharam boatos de que os "coliboys" eram colorados infiltrados para manchar o clube. Os jogadores demoraram a aceitar aqueles espalhafatosos, mas depois viraram até colegas de bar. O presidente do Grêmio na época, Hélio Dourado, foi quem abriu as portas do clube para a nova torcida.
— Era uma torcida fantástica, me ajudaram no momento difícil do Grêmio. Eles fizeram a diferença — ressalta o ex-jogador Iúra.
Na primeira vez, alguns torcedores até investiram contra a Coligay. Situação contornada por um hábil Volmar. O líder havia contratado seguranças à paisana e articulado com a Brigada Militar para evitar confusões. Ele também bancava aulas de caratê para autodefesa dos integrantes.
O pessoal dançava, cantava, e era uma festa e tal. Claro que dentro da ordem. Era preciso muita ordem e disciplina para que as coisas dessem certo, porque até hoje existe muito preconceito.
VOLMAR SANTOS
Sobre a forma de a Coligay torcer
— Eles treinavam defesa pessoal, faziam aulas de caratê para se defender. Mas eles não se envolviam em brigas — afirma o jornalista Léo Gerchmann, autor do livro "Coligay - Tricolor e de todas as cores".
Tanto que a história da Coligay tem apenas uma briga registrada. Em Passo Fundo, os integrantes "correram" com um adversário que os recebeu a pedradas. Volmar comandava a torcida sob pulso firme. Na Coliseu, ensaiavam as coreografias e os cânticos. No estádio, surgia um código de conduta, sintoma de tempos em que a Delegacia de Costumes tornava oficial o preconceito.
— O pessoal dançava, cantava, e era uma festa e tal. Claro que dentro da ordem. Era preciso muita ordem e disciplina para que as coisas dessem certo, porque até hoje existe muito preconceito — recorda o fundador da Coligay.
Contra o preconceito, uma torcida que além de revolucionária era pé quente. Em 25 de setembro de 1977, o Tricolor deu fim à hegemonia de oito anos do Inter com o histórico título do Gauchão. E a Zero Hora do dia 2 de outubro registrou: "O grito (alegre) da Coligay ajudou o Grêmio a ser campeão".
Pé quente até em São Paulo
Naquele mesmo 1977, a voz inconfundível do presidente do Corinthians Vicente Matheus pegou de surpresa um atônito Volmar Santos do outro lado da linha. Ao telefone, uma convocação em forma de convite:
— Vocês deram sorte pro Grêmio. Venham aqui.
O aceite vem sob uma condição irrevogável.
— Tudo bem. Mas vamos vestidos de gremistas — rebateu Volmar Santos.
E assim, a fama de pé quente da Coligay rompia fronteiras, exportada a terras paulistas. O Corinthians encerrou o jejum de 22 anos sem títulos no Paulistão com uma vitória por 2 a 1 sobre a Ponte Preta. Em um Morumbi abarrotado por 142 mil pessoas e aos olhos dos "coliboys" — trajados de azul, preto e branco, claro.
O fim da organizada
A Coligay encerrou as atividades em 1983. Pouco menos de seis anos depois da fundação. Suficientes para ver o Grêmio conquistar o primeiro Brasileirão, a América e o mundo. Naquele ano, Volmar Santos voltou à terra natal, Passo Fundo, para cuidar da mãe, doente. E a Coligay não resistiu sem o pulso firme de seu líder.
— Parece que a Coligay cumpriu uma missão — sentencia Gerchmann.
Mas seu legado resiste cada dia mais atual. Quarenta e cinco anos atrás, a Coligay fez da arquibancada um espaço de todos e para todos. Como é, ou ao menos deveria ser, o futebol.
Legado da Coligay
Pioneira, a Coligay é até hoje a única torcida homossexual identificada a ter frequentado por longo tempo os estádios do país. A FlaGay, do Flamengo, estreou em 1979. Mas virou "praga" nas palavras do presidente Marcio Braga pela derrota por 3 a 0 no Fla-Flu e não vingou. No Inter, a Interflowers também foi uma tentativa frustrada.
— Ela foi espetacular na sua transgressão das normas de gênero. E continua sendo. Mas infelizmente, a gente não conseguiu a partir da experiência da Coligay pluralizar de forma mais perene o que é torcer no Brasil — afirma o doutor em Educação pela UFRGS Gustavo Bandeira, autor do livro "Uma história do torcer no presente".
Prova disso é que o Brasil viveu um hiato de quase 30 anos sem a presença de torcidas LGBT+. Apenas a partir de 2013 é que os coletivos começaram a se organizar para tentar voltar a frequentar os estádios. Algo que ainda segue distante.
Em 2022, clubes como o Vasco da Gama e Bahia são exemplos de inclusão nos estádios. O time carioca pintou São Januário com as cores do Orgulho LGBT+ no jogo contra o Operário-PR e fez recentemente uma reunião com as organizadas, que assinaram um termo de compromisso para abolir cânticos homofóbicos.
Cânticos que ainda são realidade e passam impunes nos estádios. Desde 2017, o Superior Tribunal de Justiça Desportiva (STJD) julgou apenas 10 casos de homofobia no futebol brasileiro. A punição mais dura foi aplicada duas vezes: uma multa de R$ 50 mil.
— A punição pode ser um instrumento pedagógico, mas tem que ser uma punição de verdade. E a minha sugestão para que a gente possa ter efetividade, é tabela. Não precisa tirar do bolso. Tira ponto — ressalta Gustavo Bandeira.